
Oportunidade de trabalho e educação de qualidade ainda é uma realidade distante para os milhões de brasileiros com deficiência que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somam 24,6 milhões – cerca de 14,5% de toda a população. Dados do Sistema Nacional de Emprego (Sine) apontam que em todo o Brasil foram disponibilizadas, no ano passado, 36.837 vagas voltadas para esses cidadãos, mas apenas 7.206 foram preenchidas. Quando o assunto é educação, o cenário não é diferente. Do total de pessoas com deficiência, sete milhões, ou cerca de 30%, são analfabetas.
Mas uma organização do terceiro setor de São Paulo, o Instituto Paradigma, tem mostrado que é possível mudar esse cenário. Em atividade desde 2001, o instituto já promoveu a inclusão social de cerca de dois mil alunos com deficiência em classes regulares e se envolveu com a formação de pelo menos 3.500 professores da rede pública, auxiliando na elevação dos índices de inclusão de municípios que hoje se tornaram referência nesse processo no país. Em entrevista ao Responsabilidade Social.com, a presidente do instituto, Luiza Russo, fala como é o trabalho do instituto e apresenta o cenário da inclusão social no Brasil. Confira:
1) Responsabilidade Social – Como é pautado o trabalho do Instituto Paradigma e quais são os projetos desenvolvidos hoje?
Luiza Russo – O trabalho do Instituto Paradigma (IP) é pautado na missão de gerar soluções e serviços que promovam a inclusão social das pessoas com deficiência. Para isso, organizamos as nossas atividades em três grandes programas:
– Programa de Inclusão Educacional – onde desenvolvemos projetos e assessoramos tecnicamente as secretarias de educação para a implantação de sistemas inclusivos de educação; trabalhamos na capacitação de professores; no gerenciamento das necessidades específicas dos alunos com deficiência para que possam freqüentar as classes regulares com equiparação de oportunidades de participação; ajudamos os gestores públicos na estruturação do marco legal do processo. Dessa forma, é que se estruturam as políticas públicas de atendimento às demandas da educação inclusiva e das parcerias estratégicas necessárias na comunidade para promover a atenção, com qualidade, das pessoas com deficiência.
– Programa de Desenvolvimento Social e Comunitário Inclusivo – trabalhamos com atividades que promovam espaços de participação das pessoas com deficiência e suas famílias para que concretizem o exercício de seus direitos. Desenvolvemos ações de informação para disseminar o direito das pessoas com deficiência e ações de prevenção à saúde, acesso à educação e trabalho.
– Programa de Inclusão Econômica – auxiliamos, por meio de consultorias técnicas, as empresas e as instituições envolvidas na geração de trabalho e emprego para as pessoas com deficiência. Com o poder público e as empresas, viabilizamos a implantação de cursos de qualificação para o trabalho, promovemos espaços de troca de experiências entre as empresas por meio do Fórum pela Inclusão Econômica que coordenamos. Enfim, são sempre atividades que possibilitam a sustentabilidade do processo de inclusão pensando de forma ampliada no contexto social e das políticas públicas de garantia de direito das pessoas com deficiência.
2) RS – Que resultados podem ser apresentados?
LR – Os resultados são visíveis e muito motivadores: em relação à inclusão educacional, nossa atuação já promoveu a inclusão de quase 2.000 alunos com deficiência em classes regulares. Já nos envolvemos com a formação de pelo menos 3.500 professores da rede pública. Auxiliamos na elevação dos índices de inclusão de municípios que hoje se tornaram referência nesse processo, como é o caso de Santo André, que apresenta uma média de matrículas de alunos com deficiência de 2,8% do total de alunos inscritos na rede pública, quando a média nacional dos municípios é de 0,6%.
Em relação às empresas, mais de 200 grandes empresas já estabeleceram algum contato com o IP para promover suas ações corporativas de inclusão com qualidade e sustentabilidade de processos. Já auxiliamos no planejamento e construção de muitos cursos de qualificação profissional que geraram possibilidades de emprego para mais de 500 profissionais com deficiência.
Em relação ao desenvolvimento social e comunitário inclusivo, já promovemos encontros e formação para aproximadamente 4.000 famílias de baixa renda. Editamos um guia de recursos e serviços para o bebê prematuro e de alto risco na cidade de São Paulo, com mais de 600 serviços, como ação preventiva e de qualidade de atendimento à criança com deficiência. Esse guia foi distribuído gratuitamente para todas as unidades básicas de saúde da capital, ONGs e hospitais que prestam atendimento a gestantes e bebês. Enfim, são muitas atividade no decorrer dos nossos sete anos de existência.
3) RS – Como caminham as iniciativas da instituição e as políticas públicas do Estado? Há uma troca de informações?
LR – Hoje existe, de fato, a possibilidade concreta da parceria entre os três setores da sociedade. As ONGs estão cada vez presentes e desenvolvendo objetivos compartilhados principalmente com governos, o que colabora na concretização mais próxima das expectativas da comunidade em relação ao entendimento e atendimento de suas necessidades. Mas, no Brasil, ainda temos muito que caminhar, pois ainda nos deparamos com improbidades e mal uso de organizações assistencialistas e gestores públicos na defesa de interesses próprios. A única forma é o esforço contínuo na profissionalização do terceiro setor. Cada dia mais percebemos uma tendência das organizações do terceiro setor de adotarem processos de gestão pautados em modelos de governança corporativa, sem, contudo, perder o foco e a vocação do seu trabalho. É o que acontece conosco.
4) RS – Muito se fala em inclusão social, mas na prática quais são os aspectos que envolvem esse conceito? Ele também pode ser entendido como acessibilidade?
LR – Hoje, de fato, a questão do processo de inclusão está em constante debate. Temos a convenção da ONU que organiza as diretrizes sobre os direitos das pessoas com deficiência para que os países signatários desse tratado adotem essas medidas como balizadores de suas políticas internas. O Brasil teve uma participação destacada nesse trabalho e agora está tratando esse documento com força constitucional, o que reforçará um movimento de revisão interna de sua legislação, de todos os estados, para se colocar em prática concretamente os direitos assegurados nesse documento.
A questão central do processo de inclusão é o resgate da indiscutível prerrogativa das pessoas com deficiência decidirem sobre suas vidas, serem respeitadas como qualquer cidadão e participarem ativamente da vida comunitária, não mais numa posição inferiorizada onde se reforça a visão social e cultural da fragilidade, do assistencialismo e da incapacidade.
A questão do acesso à educação e ao trabalho são pontos fundamentais para se estabelecer a promoção desses direitos. Hoje, o decreto que determina a cota de contratações pelas empresas de pessoas com deficiência tem contribuído muito para acelerar esse movimento.
5) RS – E como está o Brasil nesse cenário? Estamos na direção certa?
LR – Os dados ainda nos mostram um cenário desafiador em relação ao processo de inclusão. Segundo o IBGE, o Brasil tem 178,5 milhões de pessoas e cerca de 14,5% tem alguma deficiência, ou seja 24,6 milhões de brasileiros. Na cidade de São Paulo residem mais de 11 milhões de pessoas e em torno de 10% delas têm algum tipo de deficiência.
Informações do mês de fevereiro da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) de São Paulo mostram que o Brasil está progredindo para a inclusão social desses cidadãos, mas ainda há muito para ser feito. De 2001 para cá, o número das contratações de pessoas com deficiência no estado de São Paulo saltou de 601 para 80.988 e o número de empresas que cumprem a Lei Federal 8.213/91, conhecida como a Lei das Cotas, passou de 12 para 9.796 no mesmo período.
Outro grande desafio para a inclusão dessas pessoas está na baixa escolaridade, que resulta na baixa qualificação para o trabalho. Segundo o MEC, em 2006, dos 33 milhões de brasileiros matriculados no ensino fundamental, apenas 2% tinham alguma deficiência. No ensino médio, de 9 milhões de alunos, a parcela de pessoas com deficiência cai ainda mais, para apenas 0,13%, e no ensino superior, de 4 milhões de estudantes, 0,12% têm deficiência. Esses números mostram que ainda estamos longe de ser um país onde a questão da inclusão das pessoas com deficiência está resolvida.
6) RS – Na sua avaliação a promoção da igualdade social evoluiu nas empresas brasileiras? Elas já incluíram em suas agendas os direitos humanos ou esse assunto ainda está restrito a ONGs?
LR – A questão da igualdade social de direitos tem sido pauta de trabalho das organizações. Muitas delas têm se envolvido, por experiências internas ou por perceberem por meio da sinalização da sociedade consumidora de seus produtos, a preocupação cada vez maior com o futuro do nosso planeta, das relações humanas, da ética e da transparência. Recentemente o Instituto Ethos promoveu um encontro com os presidentes das empresas, onde estiveram presentes o presidente Lula e o ministro da Justiça para discutir a questão dos direitos humanos, incluindo em uma das mesas programadas a discussão da inclusão das pessoas com deficiência no ambiente corporativo. Temos hoje no Brasil muitos bons exemplos dessa prática. Podemos citar a HP, a CPFL e o HSBC.
7) RS – Como a senhora enxerga a lei que obriga as empresas a contratarem pessoas com deficiência. É uma maneira eficaz de promover a inclusão social? Os resultados são bons?
LR – A questão da contratação das pessoas com deficiência pelas empresas, em relação ao cumprimento da lei de cotas, é uma ação afirmativa de reparação de um direito, até então cerceado às pessoas com deficiência, de poderem concorrer e obter um emprego. É claro que essa medida, no cenário que nos encontramos hoje, da baixa qualificação profissional e educacional dessa população, causa uma série de desconfortos e idiossincrasias, como a cobrança do estado pelo cumprimento da lei e a fragilidade das políticas públicas no atendimento educacional dessa população bastante numerosa, de quase 26 milhões de brasileiros; a busca de soluções pouco sustentáveis de cursos rápidos, e muitas vezes promovidos pelas empresas e ONGs, de qualificação para jovens e adultos com deficiência sem visão de longo prazo de resgate de escolaridade que promove o acesso ao emprego em funções sempre operacionais e sem mobilidade de carreira nesse primeiro momento; a generalização do processo de inclusão econômica também contribuindo para a construção de um novo estereótipo da pessoa com deficiência onde algumas empresas recebem e tutelam o futuro e a carreira das pessoas com deficiência; o mercado aquecido para contratações gerando oportunismos dos dois lados (empregador e empregado).
Mas, todo processo tem duas faces. Temos também testemunhado grande esforço, compromisso e criatividade das empresas em construir processos éticos e sustentáveis e que, tenho certeza, gerarão parâmetros importantes para a avaliação e qualificação da legislação e das diretrizes políticas do país. As ONGs que tradicionalmente cuidaram da atenção e dos interesses das pessoas com deficiência têm contribuído para disseminar seu conhecimento especializado em favor desse processo. O poder público está se organizando no acolhimento das necessidades dos alunos com deficiência nas escolas públicas. E como estamos falando de um processo que exige uma dialética permanente, precisamos ter paciência e trabalhar com afinco de forma positiva, pois só assim exercitaremos nossos valores democráticos de equiparação de oportunidades e exercício de direitos a todos os brasileiros.
8) RS – Quais outros mecanismos de promoção social podem ser apontados como medidas concretas?
LR – Em relação a outros mecanismos de promoção social das pessoas com deficiência, acredito que na medida em que a sociedade vai construindo essa visão contemporânea de participação das pessoas com deficiência na vida comunitária, naturalmente se ampliam esses direitos, como a preocupação com uma cidade mais acessível (o que também beneficiará a população crescente de idosos no país), o esporte adaptado, o acesso à cultura sem barreiras (já temos exemplos de museus adaptados com monitores preparados para atender a população com deficiência), o transporte adaptado, etc.
9) RS – Quais são os desafios da instituição e os planos para o segundo semestre deste ano?
LR – Não é fácil eleger esses desafios, uma vez que estamos diante de um cenário onde ainda temos muito a fazer e muitas prioridades. Mas, pela vocação do IP e sua equipe de consultores, e pelas diretrizes desenhadas no nosso planejamento estratégico com metas desenhadas até 2010, estaremos focando na educação, principalmente na população jovem e adulta com deficiência que demanda qualificação para o trabalho e a necessidade de resgatar seus estudos para transformarmos em possibilidades positivas seus projetos futuros. Vamos continuar investindo nossos esforços na educação pública, pois sabemos que é a mais importante via de acesso dessa população. Continuaremos nosso trabalho com as empresas. Também pretendemos disseminar nosso conhecimento capacitando ONGs para que possam atender as demandas do processo de inclusão.
10) Qual o seu entendimento pessoal do termo “responsabilidade social”?
LR – Eu entendo a responsabilidade social como um exercício permanente de se perceber fazendo parte de um todo, onde nossas ações e valores afetam sim a vida das pessoas, e que temos a capacidade de fazer mudanças sem projetar essa responsabilidade nas instituições, quer elas sejam públicas ou privadas, colocando-nos somente no papel de espectadores.
Instituto Paradigma – Site: www.institutoparadigma.org.br – Tel.: (11) 3895-9200
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