Por Márcio Pochmann
Os excessos de desregulamentação nas economias motivados pelo modo como a globalização se generalizou na passagem para o século XXI levaram à crise internacional de 2008. E a enxurrada crescente de capital especulativo, cada vez mais desconectada do sistema produtivo, não contaminou somente o centro dinâmico do capitalismo mundial.
O sofrimento humano gerado pela contenção do dinamismo econômico desde então tem se expressado não apenas pela destruição de postos de trabalho que faz aumentar o desemprego e por consequência a pobreza e a desigualdade social. Pior, provoca crescente perda da esperança de que seja possível construir um mundo melhor, capaz de manter aceso o horizonte de maiores oportunidades para grande parcela da juventude.
O foco difusor dos distúrbios que se pronunciam também nesta segunda manifestação da crise global, iniciada há quase três anos, segue intocável. O mercado financeiro, que se tornou o segmento mais globalizado e detentor das mais altas taxas de lucratividade, permanece o menos comprometido com a sustentação do desenvolvimento. Por conta disso, registra-se atualmente que, diferentemente da primeira onda de manifestação da crise global em 2008, quando houve a convergência de intervenções governamentais antidepressivas, as medidas adotadas são de caráter pró-cíclicas, evidenciadas pelo corte no gasto público e elevação da carga fiscal voltada à reorganização das abaladas finanças públicas.
O resultado direto disso deverá ser o aprofundamento da desaceleração da economia mundial, muito provavelmente a recessão. Nesse sentido, o prazo da melhora possível das finanças públicas será ampliado, especialmente nos países desenvolvidos que já convivem com o agravamento dos problemas sociais (desemprego em alta e aumento da desigualdade de renda e pobreza).
Neste contexto de restrição interna, resta ao setor externo o papel principal de animação dessas economias, por meio dos estímulos à exportação derivada da desvalorização cambial e desoneração fiscal. Assim, o acirramento da competição global deverá ser o resultado final. Se a produção do conjunto da economia mundial se desacelera ou decresce, o quadro de maior competitividade externa repercute direta ou indiretamente no comportamento do mercado interno de indistintos países. Com importados mais baratos competindo com bens e serviços gerados internamente, a inflação tende a desabar, bem como pode ser alterada profundamente a composição da produção, sobretudo nos países não desenvolvidos.
A reversão dessa marcha mundial é imprescindível. Enfrentar os dilemas da falta de solidariedade global é tarefa inadiável, especialmente no que diz respeito ao restabelecimento da cooperação necessária à redefinição do padrão de desenvolvimento sustentado e sustentável ambientalmente.
Para isso, a retomada de ações voltadas à regulação do mercado financeiro e implementação da taxação sobre transações financeiras por alguns governos de países como França e Alemanha apresenta-se contemporânea às exigências de superação da crise global três anos depois de seu início. Não pode mais continuar sendo a vítima disso tudo (setor produtivo e trabalhadores) a principal desaguadora de todo o ônus da crise global gerada por posturas descomprometidas com o desenvolvimento global como encontrado no mercado financeiro atualmente.
Ao mesmo tempo em que se registra o avanço de uma segunda onda de manifestação da crise global, percebe-se a oportunidade para o Brasil experimentar novas e mais ousadas medidas de defesa da produção e do emprego nacional, conforme verificado em alguns países (China, Inglaterra, França, Índia e Noruega). Três modalidades de políticas governamentais poderiam ser consideradas. Inicialmente, aquelas atinentes ao reforço da articulação e coordenação de ações defensivas da produção e do emprego em âmbito regional. Para o Brasil, a possibilidade de combinar políticas econômicas e sociais de valorização do mercado interno concomitante com decisões equivalentes nos países sul-americanos, especialmente do Mercosul.
A segunda modalidade de políticas governamentais envolveria a utilização alternativa de recursos alocados pelo fundo soberano para o fortalecimento do setor produtivo. No Brasil, cuja estrutura produtiva encontra-se fortemente internacionalizada, a possibilidade da aquisição de ativos de empresas estratégicas, especialmente aquelas com valor de suas ações desvalorizadas.
Por fim, a modalidade de políticas governamentais associada à progressividade do sistema tributário. Para o Brasil, que possui uma tributação extremamente regressiva, ou seja, assentada nos segmentos de menor poder aquisitivo, a possibilidade de corrigir distorções na tributação direta como o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e o Imposto de Renda (IR). Ao mesmo tempo, a oportunidade de introduzir definitivamente o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), cujo resultado geral, além da elevação da contribuição ao fundo público ou compensação para desonerações fiscais aos segmentos de menor renda, fortaleceria o grau de coesão social.
Essas distintas modalidades de políticas públicas a serem consideradas não devem excluir outras iniciativas. A crise global é uma grande doença que precisa ser enfrentada com coragem e determinação, sem abandonar o sentido geral de constituição de um país soberano e cada vez mais menos injusto.
Márcio Pochmann é economista e professor livre-docente licenciado na área de economia social e do trabalho e também pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp. Atualmente é o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O artigo foi publicado originalmente na Revista Fórum.
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