
Com o sonho de tornar o mundo um lugar mais justo e igual, a psico-pedagoga italiana Rita Ippolito saiu de sua terra natal e mudou-se para a América Latina, em 1987. Desde o início, trabalhou com projetos de cooperação internacional seguindo o objetivo de promover o desenvolvimento harmonioso de crianças e adolescentes. Vários foram os trabalhos voltados para a inclusão de crianças e adolescentes em situação de rua. Pesquisas, ações educativas e artísticas de recuperação e socialização, matérias em jornais e vídeos para informar e sensibilizar a opinião pública sobre a condição de exclusão de parte da infância do mundo foram alguns deles. A descoberta da questão da exploração sexual infantil foi uma conseqüência de seu envolvimento na área. A partir daí, foram longos anos de trabalho e pesquisas, até que Rita desenvolveu o mais completo guia sobre o assunto no Brasil: o Guia Escolar – um instrumento elaborado para orientar professores na identificação de sinais de abuso sexual em crianças e adolescentes. Atualmente, Rita é consultora contratada da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Conheça, a seguir, suas revelações:
1) Responsabilidade Social – De que maneira a senhora se envolveu com a pesquisa nessa área?
Rita Ippolito – Fascinada pela história do Brasil, pela grande mobilização social em torno de um novo paradigma dos direitos humanos – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – batalhei para criar as condições para o desenvolvimento de um projeto de apoio ao fortalecimento de ONGs que estavam engajadas na implementação do ECA e de uma nova cultura da infância como sujeito de direitos. Esta lei poderia ser o trampolim para a cidadania de muitas crianças e adolescentes, não somente no Brasil, mas em toda a América Latina. Estou no Brasil desde 1992, através de um contrato com a cooperação italiana em apoio ao fortalecimento de ONGs na área da infância em situação de risco. Em 1994, assumi a direção técnica do programa da USAID com meninos e meninas em situação de risco nas capitais do Nordeste. Em 1993, a CPI sobre a exploração sexual revelou um fenômeno de grande alerta sobre turismo sexual envolvendo crianças e adolescentes nas cidades litorâneas e, a partir desse momento, o programa no qual eu estava engajada definiu como área de prioridade o apoio às pesquisas e ações para poder formular, junto com as organizações governamentais e não-governamentais atuantes nessa área, políticas para o enfrentamento desse fenômeno. Desde 1994, até hoje acompanhei todos os momentos importantes nessa área: os primeiros seminários regionais e nacionais; a carta de Brasília sobre o posicionamento da sociedade brasileira apresentado em Estocolmo; a primeira Conferência Mundial sobre o assunto; a elaboração do Plano Nacional de enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes; e, hoje, a atuação da minha consultoria na Secretaria Especial dos Direitos Humanos com a produção do Guia Escolar, um instrumento elaborado para orientar os professores na identificação de sinais de abuso sexual em crianças e adolescentes.
2) RS – Quais são os números e estatísticas que existem nessa área que podem revelar a face dessa questão social no país?
RI – Uma das fontes mais confiáveis para obtermos números e estatísticas é o Disque-Denúncia. Desde 1997, foi criado o Sistema Nacional de Denúncia – coordenado e gerenciado pela ABRAPIA, ONG do Rio. Hoje, o mesmo está hospedado no call center do Disque Saúde da Secretaria de Gestão Participativa do Ministério de Saúde. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos coordena e acompanha as denúncias e encaminha para os vários estados envolvidos. Em seis meses de funcionamento, foram recebidas cerca de 5000 denúncias. Este número é alarmante porque, apesar de todas as campanhas e informações sobre a importância das denúncias, denunciar casos de abuso e exploração não é uma operação tranqüila e fácil para os denunciantes, que se sentem ameaçados e receosos de revelar o que sabem. O número de denúncias deflagra, portanto, uma dimensão maior do fenômeno, muito mais difuso em todo o território nacional. Estes dados estão sendo trabalhados e analisados junto com os dados coletados pela Frente Parlamentar Mista, com a instalação da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) sobre exploração sexual. Temos várias pesquisas localizadas nos estados e municípios, e uma pesquisa sobre tráfico de seres humanos a fins de exploração sexual de crianças e adolescentes. Na pesquisa, foram identificadas várias rotas de tráfico nacional e internacional. Situações de trabalho escravo e venda de crianças.
3) RS – Quais são as frentes de atuação que existem no combate à exploração sexual infantil?
RI – Nestes anos, várias articulações e redes nos municípios foram criadas para fortalecer o enfrentamento do abuso e da exploração sexual. Iniciativas da sociedade civil organizada que, junto a setores governamentais, fizeram com que se pudesse elaborar estratégias e políticas nessa área. Foi elaborado o Plano Nacional de Enfrentamento ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e, junto com a formulação política, o Programa Sentinela de Atendimento. Vale destacar que, com a declaração do Presidente Lula, o combate ao abuso e exploração sexual passou a ocupar lugar central na agenda política das ações do governo para a infância. A articulação da sociedade civil através do Comitê Nacional e a Comissão Interministerial estão trabalhando para avançar na qualidade da investigação e denúncias, e no fortalecimento de serviços públicos de atendimento qualificados.
4) RS – Como é a atuação da rede de prostituição infantil no Brasil? Qual estado brasileiro apresenta a maior incidência desse tipo de crime?
RI – Os dados que disponibilizamos com certa confiabilidade estão na última pesquisa sobre tráfico de seres humanos. Nela, são identificadas várias rotas de prostituição. Entre elas, a região Norte do país tem uma incidência muito forte nas chamadas fronteiras secas. Estados dessa área apresentam situação de engajamento de crianças e adolescentes em esquema de tráfico interno e externo em regime de escravidão, exploração de redes de tráfico de droga e de armas. As cidades litorâneas, por sua vez, apresentam o fenômeno de turismo sexual envolvendo as cidades do Nordeste, nas quais as denúncias mostram como responsáveis não somente estrangeiros, mas também empresários do turismo local.
5) RS – O governo tem agido de maneira satisfatória na busca de uma solução para o problema?
RI – Várias são as iniciativas tomadas pelo governo nesse sentido. A Secretaria Nacional de Justiça está coordenado todas as ações de responsabilização e uma Comissão Interministerial para ter políticas coordenadas e articuladas. Mas, ainda mais importantes, são as efetivas políticas de descentralização nos estados e municípios. Esse trabalho visa priorizar orçamento nessa área e poder concretizar a gestão pública do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, além de um efetivo funcionamento do sistema de garantia dos direitos aonde Conselhos Tutelares, Delegacias e Juizado trabalhem juntos para dar celeridade aos processos, e para que se instale uma cultura da punibilidade para esses crimes.
6) RS – Como a sociedade civil pode agir para contribuir com as ações contra a exploração sexual infantil?
RI – A sociedade civil teve e tem um papel importante para contribuir na mobilização social e no monitoramento das ações de responsabilização para combater este tipo de violência. Em todo o Brasil, o acúmulo das experiências das ONGs nesse sentido é muito grande e muitas lições aprendidas estão sendo referência para a implantação de políticas públicas. A articulação em redes municipais, o monitoramento da implantação do Plano Nacional a nível local, a fiscalização do orçamento público fazem parte do papel da sociedade civil organizada. Até hoje, por meio de parcerias com universidades, as ONGs foram protagonistas de dados e diagnósticos locais para a análise de situação orientando a administração pública. A metodologia de intervenção, o tipo de atendimento e a criação de ambientes aptos para a proteção da criança, decorrem do esforço da sociedade civil nesse sentido.
7) RS – As punições para esse crime previstas na lei brasileira são satisfatórias?
RI – A base jurídica para o tratamento da questão do Abuso e Exploração Sexual de crianças e adolescentes é baseada no tripé: Constituição Federal, 1988, o Código Penal Brasileiro, 1940, alterado significativamente em sua Parte Especial em 1984 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, 1990. Há muito a mudar na legislação brasileira, particularmente no Código Penal. O movimento social e as instituições envolvidas para a atualização do Código Penal elaboraram uma proposta que está em trâmite no Congresso; em seguida as mudanças sugeridas: substituição do título “os crimes contra os costumes” para o título “os crimes contra a dignidade sexual”. Esta simples alteraão traz mudanças substanciais como a eliminação de conceitos como “mulher honesta”, “mulher virgem”, “conjunção carnal”, “ato libidinoso”, “ato obsceno”, entre outros. Também se faz necessária a inclusão de um artigo que define como crime atos libidinosos, sem contato físico, praticados contra menores de 14 anos. Além da possibilidade de proceder mediante ação de iniciativa pública, caso o crime seja cometido contra pessoa menor de catorze anos. O ECA é considerado, internacionalmente, como um instrumento legislativo de vanguarda e tornou-se referência para a proteção da infância. Ele se fundamenta nos marcos doutrinários da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho sobre a idade mínima para ingresso no mercado de trabalho (1976), Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989). Alem do ECA reforçar os princípios constitucionais, ele toma medidas concretas para a proteção das crianças e dos adolescentes, além de punir os responsáveis por crimes sexuais. Entre as medidas estabelecidas estão: a obrigatoriedade de notificação dos casos do abuso aos conselhos tutelares; o afastamento do agressor da moradia comum; a proibição de uso de crianças e adolescentes em produtos relacionados com a pornografia; a criminalização de pessoas e serviços que submetam criança e adolescentes à prostituição e à exploração sexual; o agravamento das penas do Código Penal para os crimes de maus-tratos, estupro e atentado ao pudor, quando cometidos contra crianças abaixo de 14 anos. Para resumir, embora o Brasil tenha o ECA e a Constituição Federal Brasileira que priorizam a proteção integral de crianças e adolescentes, muitos caminhos ainda devem ser trilhados em termo legais e culturais para desvelar o fenômeno. Violência sexual contra criança e adolescente é crime e isso implica em denúncias e medidas de repressão. Ao mesmo tempo, é importante oferecer uma proteção integral para as crianças, oferecer um tratamento especializado para as vítimas da violência e, ainda, um tratamento para o abusador\explorador. O caminho já está traçado, agora é fundamental uma sensibilização social para que o art. 227 da Constituição Federal se concretize: “É dever, da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito a vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, á profissionalização, à cultura, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, alem de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
8) RS – Como a senhora avalia a atuação da Senadora Patrícia Gomes na CPI de Exploração Sexual Infantil?
RI – A Frente Parlamentar, ambiente aonde nasce a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) criada há dez anos ganhou novo fôlego na atual administração, graças ao desempenho da Senadora Patrícia Gomes e da Deputada Maria do Rosário. A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investiga as situações de Violência e Redes de Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil, nesses cinco meses de efetivo funcionamento, tem incidido na formação da opinião pública, e conseqüentemente gerado um processo de mobilização nos setores públicos, no movimento social de defesa dos direitos da criança e na sociedade em geral, como possibilidade de criar ações efetivas para alterar atitudes e comportamentos de combate à impunidade, bem como de proteção às vítimas através de implementação de políticas públicas. Ao encerrar os trabalhos do ano de 2003, a CPMI já reúne dados investigatórios e de sistematização do conhecimento sobre o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, que lhe habilita a oferecer recomendações objetivas de enfrentamento ao turismo sexual, contando com a participação dos poderes públicos e da sociedade civil organizada. Várias são as iniciativas que estão sendo tomadas. Entre elas, um pacto de acordos e compromissos que possam ser firmados entre as autoridades dos três poderes e a sociedade civil, envolvendo as unidades da federação, para assumirem responsabilidades no âmbito do combate à impunidade e da rede de proteção social para os casos de exploração sexual de crianças e adolescentes.
9) RS – Como a senhora define o conceito de Responsabilidade Social?
RI – No “Livro Verde” da União Européia sobre a temática, a Responsabilidade Social vem definida como “um comportamento que as empresas adotam voluntariamente e para além das prescrições legais, porque consideram ser esse o seu interesse em longo prazo”. Acho este conceito importante e abrangente porque se baseia no princípio do desenvolvimento sustentável, ou seja, a possibilidade de satisfazer as necessidades humanas no presente sem prejudicar o futuro das novas gerações e para isso avaliar o pregresso e resultados empresariais a partir do impacto econômico, social e ambiental. Durante muito tempo, confundiu-se a Responsabilidade Social com ações de filantropia ou de mecenato, ações pontuais e muitas vezes desligadas do objeto de negócio da empresa. Estas ações podem fazer parte da Responsabilidade Social de uma empresa, mas, por si só, não tornam uma empresa socialmente responsável. A idéia é poder responder às expectativas de todas as partes envolvidas com o “princípio de inovação e aperfeiçoamento contínuo”. Isto pode provocar um impacto saudável no território, no sentido de contribuir para um desenvolvimento local capaz de fortalecer as políticas públicas e os direitos humanos. Para isso, uma política de alianças e parcerias entre os três setores da sociedade é estratégica para um grande pacto social em favor do desenvolvimento sustentável.
E-mail: rippolito@superig.com.br – Disque-Denúncia: 0800-99-0500
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