A advogada, Paula Storto, especializada no atendimento a entidades sem fins lucrativos e integrante do Núcleo de Estudos Avançados do Terceiro Setor (Neats) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), avalia o novo marco legal instituído no início deste mês para o terceiro setor. Por meio da Portaria Interministerial 492, o governo estabeleceu normas para a transferência de recursos da União para organizações não-governamentais mediante convênios e contratos de repasse.
Na opinião da especialista, o instrumento não é suficiente para minimizar de forma significativa o mau uso das parcerias. “A luta contra a corrupção deve envolver medidas permanentes de monitoramento e avaliação de políticas públicas, passando pelo seu planejamento, orçamento, execução e controle”, diz com exclusividade para o site Responsabilidade Social.com.
No fim de outubro, diante da sequência de acusações de irregularidades em contratos firmados com ONGs e diferentes ministérios, o governo federal publicou um decreto suspendendo repasses a convênios. Na sequência, publicou a portaria. Atualmente existem quatro formas de contratar ONGs: convênios, termos de parceria, contratos de gestão e termos administrativos. Os dois últimos regulam serviços contínuos e contêm várias exigências. Os termos de parceria fazem requisições menos duras, por tratarem de projetos de curto prazo.
1) Responsabilidade Social – Após uma série de escândalos envolvendo ONGs, o governo federal publicou no dia 11 deste mês a Portaria Interministerial 492, estabelecendo
normas para as transferências de recursos da União mediante convênios
e contratos de repasse. Para a senhora, essa norma é suficiente para
minimizar as irregularidades que vinham acontecendo?
Paula Storto – De forma geral, a Portaria é boa e vem no sentido de implementar mais transparência e participação aos processos de repasse de verbas públicas às instituições da sociedade civil pelo Estado, com a regulamentação do processo de chamamento público de entidades para celebração dos convênios, entre outras medidas.
Todavia, ela não é suficiente para minimizar de forma significativa o mau uso das parcerias por políticos mal intencionados, haja vista que a corrupção não consegue ser resolvida com uma norma, sequer com uma série delas. A luta contra a corrupção deve envolver medidas permanentes de monitoramento e avaliação de políticas públicas, passando pelo seu planejamento, orçamento, execução e controle. Isso, em todas as esferas de atuação do Estado, seja nos contratos com empresas, na contratação e avaliação de servidores, na realização de obras e, como não poderia deixar de ser, nas relações com as entidades sem fins lucrativos.
2) RS – Quais são hoje, na sua avaliação, os maiores gargalos do marco
legal brasileiro voltado para esse segmento e quais medidas são
essenciais para mudar esse quadro?
PS – Em primeiro lugar é fundamental que se entenda que o segmento das organizações da sociedade civil é muito plural e diverso e que qualquer iniciativa voltada à regulamentação desse setor deve partir dessa premissa. A criação de associações e entidades representativas da sociedade é um movimento legítimo e típico das sociedades democráticas. É fato que a pujança e organização da sociedade civil é um importante elemento de democracia e respeito aos direitos humanos fundamentais de uma nação.
Assim, quando falamos das organizações da sociedade civil, das ONGs, das associações, das entidades do chamado terceiro setor, estamos nos referindo a uma enorme gama de atividades privadas que atuam em prol do interesse público. Num Estado democrático, o interesse público não é e nem pode ser monopólio do Estado. Daí a tamanha importância de se respeitar a liberdade de associação e de autorganização das associações, assegurada em nossa Constituição Federal como direito fundamental.
Todavia, quando uma entidade privada passa a receber e gerir recursos públicos, atuando na execução de políticas públicas, é evidente que essa organização atraia e deva receber uma fiscalização voltada a assegurar o bom uso do recurso público. Nessa direção, o principal risco que devemos evitar é que a regulamentação focada no repasse de verbas públicas pelo Estado às entidades confira uma perspectiva demasiadamente utilitarista às organizações da sociedade civil, como mero recurso formal do qual o Estado lança mão para estruturar a prestação de serviços públicos.
É claro que determinados serviços públicos podem, e até devem, contar com a participação direta de entidades do chamado terceiro setor na sua execução. Todavia, essa participação não pode colocar em risco a natureza privada das organizações da sociedade civil, tampouco o papel de mediação social, participação e pressão popular que cabe a essas organizações.
3) RS – Na opinião de alguns especialistas, o convênio como forma de
cooperação entre governo e ONGs não é um instrumento eficaz, pois cria
uma série de situações que dão insegurança jurídica, visto que ele é
para ser usado entre entes federados – governo federal, estados e
municípios. Essa crítica é justificável?
PS – Sem dúvida, compartilho dessa opinião. O instrumento de convênio, na forma como foi concebido na legislação era voltado a regulamentar a parceria entre entes públicos (União, Estados e Municípios, etc) e essa origem está muito relacionada às dificuldades, inseguranças e excesso de formalidades envolvidas na sua execução.
Essa é uma realidade que vivenciamos no nosso dia a dia de advocacia especializada nesse universo público não estatal. Muitos de nossos clientes enfrentam problemas kafkanianos na execução de convênios, originários da incompreensão por parte dos órgãos de controle da diferença entre um convênio celebrado apenas entre entes públicos e outro celebrado com uma entidade privada.
Merece destaque o fato de que existem outras espécies de instrumentos voltados às relações de cooperação entre o Estado e a sociedade civil, como é o caso do Termo de Parceria, da Lei das OSCIPs, e do Contrato de Gestão, instituído pela Lei das Organizações Sociais. Esses dois tipos de contratualização são considerados espécies do gênero convênio, regulamentados por normas próprias e especificamente talhadas para regular essa especial relação de cooperação que se estabelece entre entidades da sociedade civil e entes públicos.
Esses instrumentos estão regulamentados de forma mais eficiente e razoável a essas parcerias, porém não vêm sendo amplamente utilizados no âmbito federal diante da relativa novidade e inovação trazida por esses instrumentos, que acabam fazendo com que o gestor público opte pelo modelo de convênio que, apesar de um tanto ineficaz, já é conhecido pelos órgãos de controle e fiscalização.
Recentemente o Ministério da Justiça lançou o Edital no Projeto “Pensando o Direito”, no âmbito do Programa de Democratização de Informações no Processo de Elaboração Normativa, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, para propostas de pesquisa sobre modernização do sistema de convênios entre a União e entidades da sociedade civil. No referido processo de seleção foi vencedora proposta da Fundação São Paulo (PUC-SP), por meio do Neats, de cuja elaboração tive oportunidade de participar. Nosso trabalho, no âmbito do referido projeto visa essencialmente aprofundar essa discussão e propor medidas para modernização, tão necessária, desse regramento.
4) RS – Para a senhora, o terceiro setor passa por uma crise de descrédito
no Brasil?
PS – Não acredito numa crise de descrédito do segmento da sociedade civil. Penso que as pessoas que acompanham ou pertencem a algum movimento comunitário, ou a uma associação, sabem da importância desse tipo de atuação e a valorizam e reconhecem. As entidades da sociedade civil são parte estruturante e fundamental da atuação cidadã, espaço legítimo para o desempenho e exercício dos direitos políticos das pessoas, de participação na coisa pública e, nessa direção, não se concebe uma sociedade democrática e contemporânea sem essas instituições, em especial num tempo em que a política partidária atrai cada vez menos gente.
5) RS – Qual o impacto dessa série de denúncias e medidas para o segmento?
É possível dizer que houve uma criminalização geral e que a imagem de
entidades sérias foi arranhada?
PS – O risco que se corre é a generalização. Mas, como em todo momento de crise, é hora de repensar algumas práticas e extrair um aprendizado para o futuro. Assim, temos a expectativa de que se coíba o uso e criação de organizações de fachadas por políticos corruptos, e que se puna os responsáveis por essas distorções.
6) RS – Quais os desafios para as ONGs do país na próxima década?
PS – Na minha opinião, do ponto de vista da legislação, o principal desafio que se apresenta é compatibilizar a análise da regulamentação e do controle público dessas liberdade civis ao legítimo direito/dever do Estado de acompanhar as atividades das entidades e de fiscalizar o uso de recursos públicos. Assim, a atuação das entidades da sociedade civil na coisa pública não é matéria exclusiva do Direito do Estado, mas de Direito Humano Fundamental, de cada cidadão brasileiro que pretenda exercer seus direitos políticos no âmbito de entidades organizadas na sociedade civil, num Estado Democrático de Direito.
7) RS – Qual o seu entendimento do termo ‘responsabilidade social’?
PS – Responsabilidade social é a forma pela qual pessoas e organizações conduzem suas atividades de maneira co-responsável pelo desenvolvimento econômico, social e ambiental. A palavra chave é coerência. “Ligação ou harmonia entre situações, acontecimentos ou ideias; relação harmônica; conexão, nexo, lógica”, segundo nos ensina o Aurélio.
Vivemos uma época em que diversos paradigmas estão sendo questionados. As pessoas não se contentam mais com respostas superficiais. Os cidadãos desse mundo globalizado querem entender as razões e os fundamentos das decisões. Isso porque, a mesma globalização que possibilitou acesso a novas tecnologias veio acompanhada de uma crescente desigualdade social e da imperativa necessidade de investirmos no reequilíbrio ambiental do planeta, colocando todos os atores mundiais, públicos e privados, num mesmo patamar de responsabilidade pela possibilidade de existência das gerações futuras. Assim, o movimento no sentido de exigir de todos, especialmente das grandes corporações transnacionais, o compromisso com o desenvolvimento social e ambientalmente sustentável é crescente e, na minha opinião, irreversível.
Paula Storto – Telefone: (11) 3884-3416
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