Por Peter Nadas
“É imperiosa a necessidade, pela própria sobrevivência futura das empresas, de elevarem a sua estratégia social ao mesmo nível da sua estratégia econômica e de a dominarem com tanto método, competência, cálculo econômico e social e espírito empreendedor quanto demonstram nos terrenos que lhes são familiares”.(Philippe de Woot)
A frase é dos anos 70. Nessa época, começava-se a falar em Balanço Social, que na França, em 1977, se tornou obrigatório. Mas era um Balanço Social voltado unicamente para dentro da empresa, mais precisamente para a área de recursos humanos. Havia mais de cem anos que a luta de classes opunha capital e trabalho dentro das empresas e imaginava-se que o Balanço Social poderia ser mais um instrumento para atenuar esse confronto. Em função dessa perspectiva, o que se chamava de “responsabilidade social”, há vinte anos, era fundamentalmente a preocupação de dar aos trabalhadores aquilo que as condições econômicas da empresa permitissem. Em linhas gerais, o conceito do “social” se limitava ainda a isso, se bem que inspirado por um genuíno interesse pelo bem-estar do outro.
Valeria a pena, inicialmente, para melhor conceituarmos o que é a empresa hoje – e, conseqüentemente, qual é a sua responsabilidade social – olharmos rapidamente para o passado e para o caminho percorrido. Nas organizações sociais primitivas o fator terra era predominante. A posse da terra permitia criar as riquezas que sustentavam as populações e, ao mesmo tempo em que era o foco dos conflitos foi, durante milhares e milhares de anos, o elemento decisivo do sucesso. As grandes lutas centravam-se em torno da terra, tanto entre os nômades e os assentados quanto entre agricultores e pecuaristas.
Neste contexto, a tecnologia, os conhecimentos evoluíam lentamente. Um dia, alguém teve a idéia de pegar aquela roda que servia para moer os grãos de trigo e pô-la de pé. Foi o primeiro passo para a “globalização”. (V. Revista ADCE nº 18). Foi necessário chegar aos séculos 14 e 15 para que se pudesse assistir, no mundo ocidental, a um primeiro salto qualitativo do conhecimento e da tecnologia. A invenção da imprensa e a utilização correta do leme foram dois elementos decisivos neste processo. Através da navegação e dos grandes descobrimentos, a globalização passou a caminhar a largos passos e, através do livro, o conhecimento passou a ser difundido e, de certa forma, democratizado. Foi também a época em que os conhecimentos das civilizações de diversas partes do mundo começaram a interagir (v. caso do zero). Mas o imobilismo das estruturas sociais continuava a caracterizar a sociedade ocidental. As aspirações de progresso social, a passagem de uma classe a outra eram fenômenos quase inexistentes.
A noção de responsabilidade social estava vinculada ao sistema patriarcal e feudal: o servo prestava serviços ao seu senhor e este lhe dava proteção. Foi a evolução dos transportes, ao permitir a circulação mais dinâmica das riquezas, que deu o primeiro impulso a um comércio estruturado e a um rudimentar sistema financeiro. Por sua vez, o comércio começou a gerar algumas mudanças sociais. Surgiu a burguesia. Surgiram os artesãos. Algumas descobertas no campo científico começaram a ter aplicações tecnológicas. Quando, com a máquina a vapor, explodiu a revolução industrial, o capital, fundamental para as inversões industriais em prédios e equipamentos, passou a ser o bem mais procurado. E ele estava nas mãos da burguesia, que não se satisfaz mais em estar apenas no salão: quer sentar à mesa e quer participar da festa! Daí surge uma primeira e importante onda de mudanças sociais. Assentadas nas idéias dos intelectuais e provocadas pela própria natureza das transformações econômicas, essas mudanças tomam diversas formas: revoluções, êxodo rural e urbanização, emprego e salário. Num mundo que parece acomodar-se em novas realidades, o século 19, sob uma aparente tranqüilidade, é uma panela de pressão alimentada pelos desequilíbrios sociais. De um lado, o capital todo-poderoso, de outro, um proletariado desenraizado à procura de uma vida mais decente. Surgem vozes de todos os lados, exigindo mudanças: o Manifesto Comunista, a Rerum Novarum, os sindicatos. Um “pensamento social”, com influências que se fazem sentir até os dias de hoje, passa a formar uma corrente subjacente a toda a vida da sociedade. Está na origem de uma visão, ainda dominante, de “responsabilidade social”. Segundo a escola do “laissez faire”, a “responsabilidade social da empresa consiste única e exclusivamente em aumentar o seu lucro”.
Mas atrás das chaminés da revolução industrial, está se preparando uma outra revolução, talvez ainda mais radical. A “terceira onda”, tão bem descrita por Alvin Toffler, se avoluma. Aos poucos, o domínio do conhecimento passa a ser mais importante que o domínio da terra ou do capital. O próprio capital e a própria terra passam a necessitar cada vez mais do conhecimento. E como o conhecimento está profundamente ligado ao próprio ser humano, que o tem em sua cabeça surge, como novo elemento decisivo de sucesso, o fator humano. A evolução, a passos cada vez mais apressados, cumpre novo ciclo. Depois da terra, depois do domínio do econômico, a pessoa humana passa a ser o verdadeiro protagonista da história contemporânea. E a “responsabilidade social” adquire outro significado. Trata-se, não mais somente de uma preocupação dos mais favorecidos em relação a uma classe mais carente, mas de uma necessidade de atender, de “responder”, na medida de suas possibilidades econômicas, a uma expectativa de toda a sociedade, de todas as pessoas humanas que, de alguma forma, são atingidas pela ação.
Peço desculpas por esta aparente digressão, mas creio que era necessária para definirmos o que vem a ser a empresa de hoje e, principalmente, qual possa ser sua responsabilidade social. Essa evolução do pensamento sobre a empresa parece indicar que o futuro nos reserva: a)?Uma empresa que continua buscando a sua remuneração – o lucro – decorrente da aceitação de seu produto pela sociedade e da necessidade desse mesmo produto ou serviço; b)?Uma empresa que, além do lucro, tem por objetivo a própria existência do grupo de homens e mulheres que a constitui – uma comunidade – e que através dela buscam satisfazer as suas necessidades; c) É uma comunidade que se une para produzir, da forma mais eficiente e eficaz possível, um produto que a sociedade deseja. Desta visão decorre que a empresa tem: a) Uma responsabilidade econômica, em termos de resultados, da qual ela presta contas aos seus investidores e à sociedade em geral através de um “balanço econômico”; b) Uma responsabilidade social, da qual também é chamada a prestar contas através de um “balanço social”. Se a expectativa da sociedade em termos econômicos é de que a empresa tenha um saldo positivo, o mesmo pode ser dito ainda mais enfaticamente do resultado social. Os públicos interessados no sucesso social da empresa (“stakeholders”) são numerosos. Para começar, evidentemente, o próprio público interno; mas também o mercado, que reúne os fornecedores e os clientes da empresa; os aportadores de capital que, além dos dividendos ou da sua participação nos resultados, têm também suas expectativas em torno das ações sociais da empresa; os membros da(s) comunidade(s) em que a empresa está fisicamente inserida, em termos, por exemplo, de meio ambiente; a comunidade maior, a sociedade representada pelos diversos órgãos e níveis de governo e que também tem expectativas que ultrapassam o mero econômico.
O grande desafio consiste em levantar esse balanço social. O conceito de Balanço Social tem sido aprofundado e trabalhado pela Fundação FIDES – que atualmente presido – desde o início de sua existência, como instrumento de concretização da responsabilidade social da empresa mas também como forma de participação de todos os agentes envolvidos na atuação empresarial. A FIDES está atualmente coordenando um Fórum Permanente de Balanço Social, do qual participam muitas empresas que já elaboram seu Balanço Social, outras que estão em vias de implantá-lo, assim como entidades que, de alguma forma, estão envolvidas no assunto. O FÓRUM nasce de uma constatação: existe uma grande diversidade de conceitos a respeito do que vem a ser o Balanço Social. Por um lado, a perspectiva contábil que o faz assemelhar-se a um balanço econômico e que consiste fundamentalmente na somatória dos valores gastos nas ações consideradas sociais pela empresa. Por outro lado, uma visão legalista que quer obrigar as empresas a publicarem seu Balanço Social, sem levar em conta a grande variedade de tipos de empresa existentes. Uma terceira perspectiva provém de uma visão de interesse próprio e alimenta um processo de marketing, utilizando a existência de um Balanço Social como argumento de demonstração da preocupação da empresa com os aspectos sociais de sua organização. Espera-se, nesses casos, atrair clientes que venham a dar preferência a empresas que agem de forma “socialmente responsável”. Um quarto grupo de conceitos, finalmente, é o das empresas que, genuinamente preocupadas com a sua responsabilidade perante os diversos públicos com os quais se relacionam, agem de forma participativa e o seu Balanço Social consiste em medir o grau em que as expectativas desses públicos são atendidas, de ano em ano.
É evidente que essas diversas abordagens conceituais dão origem a uma multiplicidade de metodologias operacionais. Estas vão desde a elaboração do Balanço Social pelo contador da empresa até a criação de comissões internas especiais de Balanço Social. Sou de opinião que cada uma dessas perspectivas tem um pedaço da verdade e, através do Fórum, estamos no processo de juntar esses pedaços. Entretanto, há dois aspectos do Balanço Social que me parecem fundamentais: a) Ele deve poder medir o atendimento das expectativas de todos os públicos da empresa; e b) Ele deve ser um instrumento de participação. Por esta razão, estamos hoje estendendo os conceitos que, nos últimos 20 anos nortearam a confecção dos Balanços Sociais, para abranger, além do público interno, todos os outros. Formas de pesquisa estão sendo estudadas para obter dos fornecedores, dos clientes, dos acionistas, da comunidade e dos órgãos de governo, uma expressão de suas expectativas em relação àquela empresa. São essas expectativas que poderão, por um lado, traçar uma visão de futuro da empresa, para que seja possível delinear a sua vocação social e definir uma estratégia para satisfazer a missão social que daí decorrer e, por outro lado, através de comitês de planejamento social e de um conselho de planejamento social, chegar aos indicadores que permitirão levantar o Balanço Social. Esse Balanço, na verdade, consistirá da verificação do grau de atendimento das expectativas dos diversos públicos da empresa, permitindo aferir se os instrumentos utilizados foram adequados às metas definidas na fase de planejamento. Evidentemente, é importante que o Balanço Social seja publicado, não apenas como um apêndice do Balanço Econômico, mas como uma peça estratégica fundamental da empresa.
Peter Nadas, Presidente do Conselho de Curadores da FIDES (Fundação Instituto de Desenvolvimento Social e Empresarial). Site: www.fides.org.br
Também nessa Edição :
Entrevista: Cezar Busatto
Entrevista: Fernando Braga da Costa
Notícia: O que deu na mídia (Edição 10)
Notícia: Contra o desperdício
Notícia: Resgate Familiar (2003/06)
Notícia: Escola Brasil: Tesouro ameaçado
Leave a Reply