Por Valéria de Velasco
Um dos argumentos mais recorrentes desde que a trágica morte do casal de namorados Liana Friedenbach e Felipe Caffé trouxe à tona, mais uma vez, o clamor popular em torno da redução da maioridade penal é o de que as leis não podem ser mudadas sob o calor das emoções. É inadmissível, de fato, dispensar o uso da razão em qualquer circunstância, principalmente quando se trata de questões como as regras que devem reger a vida em sociedade. Mas não é possível, ao mesmo tempo, ignorar que essa emoção não é gratuita. Pelo contrário, tem origem em fatos concretos que destróem a vida das pessoas, em acontecimentos que precisam ser tratados como inaceitáveis dentro de uma sociedade civilizada – os assassinatos. E que, por isso, impõem ajustes nas normas de convivência social.
Ao aflorar, em todo o país, ante a selvageria do crime cometido em São Paulo, essa emoção refletiu muito mais do que os sentimentos de revolta contra a violência cometida e de solidariedade com a dor dos familiares das jovens vítimas. Ela tem raízes na tragédia cotidiana de milhares de famílias que no dia-a-dia vêem seus entes queridos engrossarem as estatísticas de vítimas da violência nas mãos de jovens. Representou, assim, uma espécie de gota d´água para que a população, que nunca é chamada a dizer o que pensa sobre as regras que regem a vida em sociedade, transbordasse sua reação contra as discrepâncias da legislação e a necessidade de adequar à realidade atual os limites que devem ser impostos a cada um para que se respeite o direito de todos à vida.
Os números dão a dimensão dessa realidade dramática e traduzem as razões que alimentam o clamor popular pela redução da maioridade penal. Em entrevista recente ao jornal Correio Braziliense, o ministro José Arnaldo Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça, disse que em cada dez processos criminais que chegam ao STJ, três têm a participação de menores de 18 anos, e a maioria é de crimes bárbaros. Mesmo assim, eles seguem protegidos pela lei que os coloca à margem da responsabilidade penal, numa afronta às evidências de que têm plena consciência dos homicídios que estão cometendo. Pior: numa inexplicável contradição em relação à responsabilidade que lhes é atribuída com o direito de votar aos 16 anos.
Se o menor de 16 anos ainda está em formação e não tem plena capacidade sobre seus atos, como apregoam os que hoje vêm a público minimizar a gravidade dos atos cometidos por jovens que assassinam e defender que eles continuem a não ter responsabilidade penal, por que essas mesmas pessoas aceitam que eles votem? Ou será que teremos, agora, de acreditar que eleger um presidente da República – o cidadão que conduz o destino de milhões de brasileiros – ou um representante no Congresso Nacional – cujo trabalho é produzir a legislação que regula a vida de toda a sociedade brasileira – não é um ato da mais extrema responsabilidade?
Nesse jogo de contradições, não se pode esquecer que um dos princípios que regem a vida em sociedade desde que a humanidade começou a dizer não à barbárie é o da responsabilidade. Sem ele, não existe civilização, não se fixam os limites que tornam possível a vida em comunidade. Assim como só se educa um filho impondo limites e responsabilidades, e isso se faz desde a mais tenra idade por meio das normas que cada família impõe dentro da sua própria casa, com o cidadão em sociedade não pode ser diferente, e para ele existem as leis.
A responsabilidade tem de ser proporcional aos limites e obrigações impostos a cada um, e ser cobrada com rigor correspondente à gravidade da regra que se desrespeita. A lei maior, a mais importante, sem dúvida, é a do respeito à vida. Sem ela, nenhuma das outras faz sentido. Quando o que está em jogo é o direito à vida, não se pode admitir impunidade. Mas o que se vê – e isso revolta a população – é que o foco da discussão está sendo desviado para questões que até agora não foram resolvidas por razões de incompetência e de omissão, como por exemplo as superlotações e inadequações das cadeias, e o não cumprimento dos dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Um erro não pode justificar o outro. Se o sistema não funciona e está errado ou corrompido – como realmente está – que se identifiquem e punam os responsáveis. Por que não se faz isso? É inaceitável que essa inoperância histórica seja usada como desculpa para se desviar a questão da responsabilidade penal de sua verdadeira essência e deixar impunes menores homicidas. É um acinte à sociedade manter uma legislação que permite a um jovem matar quantos quiser enquanto não completa 18 anos, porque sabe que sairá com a ficha limpa dentro de pouco tempo, como acontece hoje.
Crianças e adolescentes, independentemente da classe social a que pertençam, sejam ricos ou pobres, têm de responder por seus atos, sim. É assim que funciona em países desenvolvidos, onde todas as crianças, sem exceção, têm acesso obrigatório à educação de qualidade. Não existe outra forma de tentar se construir um país decente, de gente responsável e honesta. Esse é o recado que se apreende do clamor popular pela redução da maioridade penal.
Valéria de Velasco é jornalista e presidente do Comitê Nacional de Vítimas de Violência (Convive)
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