
Márcio Varella é exemplo de dedicação e de superação pessoal
Compreender a importância da vida e de sua eternidade é exercício espiritual fundamental para quem quer se recuperar da dependência de substâncias químicas (álcool, maconha, cocaína, heroína, barbitúricos), considerada por especialistas como a doença mais grave do planeta, já que é a que mais mata. O dependente deve aprender a fazer exercícios de auto-conhecimento dentro de clínicas, em casa, em Alcoólicos Anônimos (AA), em qualquer lugar, a qualquer hora. Basta ter força de vontade. É o que nós, dependentes de droga em recuperação, chamamos de conhecer o Poder Superior.
Comecei aos 15 anos com maconha, depois fui para o álcool, droga que mata aos poucos, cuja dependência instala-se em nosso corpo, no nosso espírito, no nosso meio social, no nosso psicológico devargazinho, leva às vezes até 10, 11 anos para provocar parada cardíaca, cirrose etc. Isto sem falar, é claro, da perda da família, do respeito e da dignidade. Recuperar tudo isto não foi fácil. O álcool me entupiu, meu corpo ganhou resistência e para ter um efeito similar ao que tinha quando comecei era obrigado a ingerir doses cada vez maiores. Ocorreu que meu corpo não aceitava mais aquela quantidade, mas eu precisava do efeito, precisava ficar legal. Resultado: fui para a cocaína, primeiro pela inalação, depois via venal.
Graças à minha mulher, Celina, fui internado numa das melhores clínicas deste país, em Curitiba (PR), e lá fiquei 76 dias aprendendo a conviver sem as drogas. Aprendi e gostei. Aproveitei e fiquei mais oito anos dentro dessa clínica fazendo um curso de consultoria especializada na recuperação do dependente químico. Aprendi a importância da vida. Foi uma ironia ter aprendido isto com as drogas, mas valeu a pena.
Um conselho que dou para quem acha que precisa e para quem acha que não precisa de apoio: pense em como sua vida seria melhor sem a droga. Poder rir à vontade, sem fazer força, poder olhar nos olhos de seu filho e dizer com a voz do coração: ‘te amo, pequenino’. Poder olhar para um amigo e agradecer a Deus por tê-lo ao seu lado. Não precisar diferenciar os pobres dos ricos, e saber que não existe diferença entre eles. É tudo uma questão de luz.
A beleza que o dependente de droga enxerga quando consegue a recuperação é poder perceber as dificuldades dos outros dependentes. E mais ainda: perceber que pode apoiá-los. Não fui incentivado por ninguém a não ser por minhas próprias convicções. Hoje, presto apoio a quem me pede, encaminho pessoas para clínicas (boas, pois em Brasília elas praticamente não existem), converso com as famílias, que também adoecem junto com o dependente e, principalmente, faço um trabalho que me dá uma satisfação tão grande que chego a pensar que este prazer é muito maior e muito melhor do que três gramas de pó purinho.
Vou às ruas, nos cruzamentos e semáforos, converso com mendigos e os encaminho aos AAs da cidade, principalmente ao AA Alvorada da 505 Sul, na W-3. De cada dez que converso, dois eu encaminho à recuperação. Edson pedia esmolas na maior cara-de-pau no semáforo da 504 Norte. Vigiei-o durante três sábados, conversei rapidamente com ele, dei um real quando ele me pediu: “O, cara, me dá uma graninha aí preu tomá uma ali”. Da quarta vez, desci e abri a porta do carro e disse a ele: “Confie em mim, entra aí que eu vou te levar num lugar legal”.
Ele estranhou quando entrou na sala de AA, ficou desconfiado. Dos seus 30 anos de idade, 20 deles foram entupidos de cana. Mas ele entendeu a proposta, ouviu com paciência os depoimentos. No final, pediu que arrumasse um lugar pra ele dormir. Um dos anônimos é dono de um comércio ali perto (casa de tecidos). Levou o Edson pra dormir lá. Era sábado. O coordenador do AA me disse que ele voltou lá durante todas as reuniões da semana seguinte. Consegui um emprego de vigia pra ele num bloco próximo ao AA. Hoje, dois anos depois, ele casou e parou de beber. Me liga todo o mês pra trocar a ficha dele no AA.
Sou seu padrinho, ele é um ser humano responsável, digno, negro, excluído, e feliz, acima de tudo feliz, pois ele é hoje o que ele fez dele hoje, ele é o que ele achou que devia ser. Faço isso sempre. Quando morei em Maringá, apostei com o prefeito como retirava da praça central da cidade os dez mendigos que há anos vegetavam por lá. Tirei nove. O décimo morreu. Tenho orgulho disto, e a única ajuda com que conto pra fazer isso, além da minha própria vontade, é a compreensão da minha família.
Atualmente, tô na paquera de uma moça drogadita que vive num buraco na 205 Sul comercial. Já dei um toque nela. Na próxima investida, ela vai pro AA. Se este país se conscientizar de que mudanças sociais quem faz é a própria sociedade, nunca mais precisaremos de patrões e muito menos de programas governamentais.
Márcio Varella é jornalista e, sobretudo, um cidadão socialmente responsável.
E-mail: marciovarella@tvbrasilia.com.br – Tel.: (61) 9269-7595
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