
Buscar onde sobra e entregar onde falta. Essa é premissa da missão da Banco de Alimentos, uma instituição com sede em São Paulo que leva comida de qualidade para a mesa de aproximadamente 22 mil pessoas não economicamente ativas. Criada há dez anos pela economista Luciana Chinaglia Quintão, hoje presidente da ONG, a instituição é referência no país na área de recolhimento e distribuição de alimentos que teriam o lixo como destino.
A entidade atende 51 instituições que trabalham com crianças, idosos e pessoas com deficiências físicas e mentais, e conta com a doação de empresas de todos os portes. Segundo Luciana Quintão, o trabalho para vencer a fome exige um esforço diário. “Estamos vivendo em um limiar e é a época de tomada de consciência. Ninguém deve se abster de sua responsabilidade individual de procurar agir no processo de construção, manutenção do ser humano, da natureza e da vida”, afirma. Em entrevista exclusiva ao Responsabilidade Social ela aponta as principais causas para o desperdício de alimentos no Brasil e o impacto do não-aproveitamento no meio ambiente e no bolso do consumidor. Confira:
1) Responsabilidade Social – Estima-se que 30% dos alimentos são jogados fora ao longo da cadeia produtiva no Brasil, o que coloca o país na vergonhosa posição de líder mundial no desperdício de alimentos. Como explicar essa falta de aproveitamento num país com mais de 21,7 milhões de indigentes?
Luciana Quintão – Explica-se pela falta de articulação da sociedade e do governo; pela falta de consciência, falta de educação, pelo excesso do descaso. Na parte mais “palpável” do problema, também podemos citar a precariedade dos locais de armazenagem e das vias de acesso ao escoamento dos alimentos, geralmente estradas esburacadas.
2) RS – Qual impacto desse desperdício no meio ambiente?
LC – O impacto do desperdício para o meio ambiente é imenso e desastroso. Por um lado, a natureza não está conseguindo repor seus elementos renováveis, como a madeira e as florestas, por exemplo, na mesma velocidade em que esses recursos estão sendo retirados. Quando os recursos não são renováveis, como são a maioria, a começar pela água, o desperdício significa chegarmos mais rapidamente ao fim do estoque desses bens e das conseqüências conjuntas.
Desperdício pode ser sinônimo de geração de lixo, qualquer lixo em decomposição gera metano, um gás muito mais poderoso que o CO2, contribuindo para o efeito estufa e a desestruturação do clima da qual estamos sendo expectadores. Uma simples casca de laranja no tempo em decomposição gera metano, imagine milhões de quilos de alimentos.
3) RS – E no bolso do consumidor? É possível mensurar o que isso representa na economia?
LC – Em relação à economia como um todo, temos algumas estatísticas que mensuram o valor do desperdício em termos financeiros. São desperdiçados R$ 12 bilhões de alimentos por ano em nosso país, segundo o Fome Zero, 2002. Uma casa brasileira desperdiça, em média, 20% dos alimentos que compra semanalmente. Isso significa uma perda de US$ 1 bilhão por ano, ou o suficiente para alimentar 500 mil famílias. Estimativa feita em 1992 pela Coordenadoria de Abastecimento da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo indicara que perdas na cadeia produtiva dos alimentos equivalem a 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB).
O bolso do consumidor pode estar relacionado ao preço que você paga pelo alimento. Nesse caso, talvez, se não houvesse desperdício, em teoria, a oferta de alimentos poderia ser maior, contribuindo para uma queda dos preços, caso a demanda tivesse uma variação menor que a oferta. Se os preços caíssem diminuiria, em tese, o nível de insegurança alimentar, já que as pessoas teriam mais acesso ao mesmo, o que seria bastante positivo.
Mais. Se você consome o alimento integralmente estará comendo mais quantidade pelo mesmo preço, o que é uma economia no bolso. Se você não compra mais do que consegue consumir, também há uma economia de recursos financeiros no orçamento. Ainda existe o custo de oportunidade do desperdício de alimentos. Menos saúde, por exemplo, é sinônimo de aumento de gastos médicos para os governos e de menos geração de renda, entre outras perdas.
4) RS – De janeiro de 1999 a julho de 2008, a Banco de Alimentos evitou que 2.956.844,81 quilos de alimentos fossem transformados em lixo e o trabalho resultou em 28.054.877 refeições, beneficiando cerca de 22 mil pessoas. É possível afirmar que as pessoas mais necessitadas foram priorizadas? Qual o processo de escolha da população atendida pela instituição?
LC – O critério de escolha é meticuloso. Os beneficiados são instituições comprovadamente carentes, que atendam seres humanos (beneficiários) que não sejam economicamente ativos, isto é, não tenham condições de gerar renda, basicamente crianças (50%), idosos (22%) e adultos (28%). Dentre essas população, existem portadores de patologias como câncer, HIV e deficientes físicos e mentais severos.
Essas crianças, se não estão para adoção, vivem dentro de núcleos familiares extremante pobres, onde não poderiam, certamente, alimentarem-se de uma forma adequada. A resposta em relação à certificação que os mais necessitados dos necessitados foram atingidos só é real dentre as populações que nos procuram, mas certamente ainda há pessoas que estão mais desassistidas que os nossos assistidos. Existe muita miséria no nosso país.
5) RS – Neste ano, a instituição completa dez anos de atuação. Como nasceu a ONG Banco de Alimentos e como ela trabalha hoje?
LC – A ONG nasceu da minha iniciativa pessoal, sendo estruturada jurídica, econômica e operacionalmente para recolher alimentos perfeitos para o consumo, mas que teriam o lixo como destino apenas por não terem sido comercializados, e assim transportá-los para as instituições carentes assistidas pelo nosso programa, para que ali pudessem ser preparados e servidos na mesa dos seus assistidos.
Continuamos fazendo exatamente a mesma coisa hoje que fazíamos no começo, com a diferença que hoje beneficiamos muito mais pessoas. E temos solidificado nossa vertente educacional seja pelos 32 estagiários de nutrição que passam por ano pela ONG, executando seus trabalhos de final de curso em saúde pública baseados nas instituições que assistimos, pelos censos antropométricos realizados pela ONG junto com esses estudantes, ou seja, pelo aumento em proporção geométrica de palestras e cursos que antes eram só voltados para a comunidade carente e hoje estão estendidos a escolas particulares e empresas. Acredito no círculo.
6) RS – A organização pretende potencializar sua atuação neste ano? De que forma? Quais as metas da instituição para 2009?
LC – Sim, este ano quero divulgar bastante o trabalho para o público em geral, fora das áreas dos assistidos. Estou falando do Brasil rico. O objetivo é que mais e mais pessoas possíveis o sustentem, participem do mesmo, tornando-se junto conosco um protagonista da mudança de cultura, da mudança de comportamento necessária para a preservação da dignidade humana, da vida e da natureza.
Seria o Brasil que tem ajudando o Brasil que não tem e mudando o futuro para que todos tenham, por meio da educação. Assim, seremos um só Brasil, e o tão prometido gigante adormecido acordará. Sabemos que atuamos nas conseqüências da fome, minimizando-as, queremos atuar na origem da fome, por meio da educação para o Brasil que tem e que vinha perpetuando o Brasil que não tem.
7) RS – Em tempos de crise, o que mais se ouve é incentivo ao aumento do consumo, mas um mundo mais sustentável passa necessariamente por sociedades que consumam menos. Como lidar com esse paradoxo? O que é consumir com responsabilidade?
LC – O mundo mudou, a começar pelo número de seus habitantes. Logo a após a quebra da bolsa americana em 1929, que se estendeu pelo começo dos anos 30 e da Segunda Guerra Mundial, economias quebradas quiseram se reconstruir por meio do aquecimento da economia. Aqui, apesar de termos milhões de miseráveis e desempregados, consumir era a palavra de ordem. Essa idéia se mantém até os dias de hoje. Queria-se tanto vender que empresários começaram a associar a noção de felicidade com a noção de possuir algo. Pessoas viraram consumidores zumbis, onde o ter é mais importante que ser.
Isso gerou uma doença social, pessoas cada vez mais desencaixadas do seu centro saudável, comprovada pelo aumento da insatisfação pessoal que veio junto com a febre do consumo. Esse modelo de produção é um modelo que não se sustenta mais. É necessário que consumamos menos e com mais consciência. E necessário que se aprenda a produzir e a consumir dentro de normas de sustentabilidade. O consumidor tem um papel importantíssimo seja para a manutenção ou para a quebra desse sistema pernicioso, pois se ele mudar seus hábitos de consumo, a indústria terá que se adaptar a ele.
Hoje, os consumidores ainda são marionetes na mão de diversos fabricantes, encontram-se adormecidos. Para que esse paradoxo seja eliminado, precisamos ter consciência da realidade. Consumir com responsabilidade é consumir sem prejuízo para o meio ambiente e para a humanidade.
8) RS – Na sua avaliação, a pessoa comum tem dimensão da sua contribuição individual nesse volume de alimentos que é jogado fora todos os dias? Quais as principais dicas para maximizar o aproveitamento dos alimentos?
LC – Acredito que não. Temos dez dicas básicas para combater o desperdício. São elas:
– Os talos de couve, agrião, beterraba, brócolis e salsa, entre outros, contêm fibras e devem ser aproveitados em refogados, no feijão e na sopa;
– Não jogue fora os talos do agrião, pois eles contêm muitas vitaminas. Higienize, pique e refogue com tempero e ovos batidos;
– As folhas da cenoura são ricas em vitamina A e devem ser aproveitadas para fazer bolinhos, sopas ou picadinhos em saladas. O mesmo pode se dizer das folhas duras da salsa;
– A água do cozimento das batatas acaba concentrando todas as vitaminas. Aproveite-a, juntando leite em pó e manteiga para fazer purê;
– As cascas da batata, depois de bem lavadas, podem ser fritas em óleo quente e servidas como aperitivo;
– A água do cozimento da beterraba pode ser utilizada para o preparo de gelatinas vermelhas. Assim você as torna mais nutritivas;
– A casca da laranja fresca pode ser usada em pratos doces à base de leite, como arroz doce e cremes;
– A parte branca da melancia pode ser usada para fazer doce, que se prepara como o doce de mamão verde;
– Com as cascas das frutas (goiaba, abacaxi, etc.), pode-se preparar sucos batendo-as no liquidificador. Esse suco pode ser aproveitado para substituir ingredientes líquidos no preparo de bolos;
– Quando for ralar a casca do limão, nunca chegue à parte branca, pois ela é amarga e pode prejudicar o sabor doce da preparação.
9) RS – Na sua avaliação, qual o maior desafio para combater o desperdício no Brasil?
LC – Educação, infra-estrutura, consciência e, muito importante, um governo mais competente e justo nas três esferas. O preço da corrupção do executivo e do legislativo e da passividade do judiciário são inomináveis. Enquanto isso, nós meros mortais, vamos fazendo a nossa parte. Um dia a gente chega lá.
10) RS – Qual o seu entendimento do termo “responsabilidade social”?
LC – Responsabilidade social é quando alguém assume sua responsabilidade dentro da sociedade. Tudo que um ser humano faz em termos individuais tem impacto no todo. Entender isso e responder por esse fato, é ter responsabilidade social. Caso contrário, esse indivíduo é irresponsável frente à sociedade.
Exemplo: consumir ou não conscientemente é um processo individual, mas que passa a ser coletivo à medida que faz parte desse. O lucro pelo lucro também é um processo individual, mas que vai impactar o todo da mesma forma. Essa noção da responsabilidade eco-social tem que ser apropriada por todos e estar presente em todo processo educativo. Não somos separados enquanto indivíduos, sociedade e natureza. É isso que cada cidadão tem que entender para amadurecer e, por fim, crescer.
Banco de Alimentos – Site: www.bancodealimentos.org.br – Tel.: (11) 2198-8000
Também nessa Edição :
Perfil: Alberto Hernandez Neto
Artigo: Nossa estranha mania de ter fé na vida
Notícia: O que deu na mídia (edição 73)
Notícia: Responsabilidade Social na estrada
Notícia: Justiça cidadã
Notícia: Esporte social
Oferta de Trabalho: Procura-se (03/2009)
Leave a Reply