Por Peter Nadas
Em sua mais recente viagem ao Brasil, em abril de 2001, a convite da Fides, a professora Laura Nash, da Universidade de Harvard, traçou um quadro muito amplo e abrangente da evolução da ética nos negócios. É evidente que a visão do que acontece, neste campo como em muitos outros, nos Estados Unidos, nos permite avaliar também a nossa caminhada. Por esta razão, nestas linhas, retomamos algumas das considerações da Prof. Nash e, usando-as como referenciais, propomos a nossos leitores analisar o que vem acontecendo no Brasil em termos de ética nos negócios. Constata-se, em primeiro lugar, que o interesse pelo assunto, após estar por mais de trinta anos em evidência nos Estados Unidos, não está diminuindo, reafirmando-se, desta forma, o fato de que não se trata de um modismo mas, realmente, de um tema de interesse generalizado, que, ao que tudo indica, veio para ficar. Duas grandes pesquisas realizadas no ano 2000 servem de base para essa afirmação: uma, nos E.U.A., da importante revista Newsweek em conjunto com a Organização Harris, especializada em pesquisas; outra, denominada Pesquisa do Milênio, de caráter internacional, desenvolvida pela Fundação Príncipe de Gales, do Reino Unido. A pesquisa Newsweek/Harris, feita em 1999 e também em 2000, consistia em perguntar aos entrevistados com qual afirmação concordavam: se as empresas deveriam preocupar-se apenas com seus lucros ou se deveriam ter, também, algum tipo de preocupação com a comunidade, chegando até mesmo a sacrificar lucros. As respostas do publico americano, na sua imensa maioria (95%), apontavam para uma responsabilidade social das empresas além dos lucros. O mais interessante do resultado dessa pesquisa é que vem dar uma resposta a uma posição neo-liberal enunciada 25 anos atrás por Milton Friedman, da Universidade de Chicago. Em artigo de grande repercussão na época, Friedman defendeu a tese de que a única e exclusiva responsabilidade social da empresa consiste em maximizar seus lucros. A pesquisa deixa bastante evidente que a expectativa do público em relação às empresas é bem mais ampla.
De modo similar, a Pesquisa do Milênio ouviu 25.000 pessoas de todos os extratos sociais, em 23 países. À pergunta sobre qual deveria ser a finalidade das empresas, havia uma escolha entre três repostas possíveis: somente o lucro, além do lucro, uma responsabilidade em relação à comunidade ou uma alternativa intermediária. Em dois terços daqueles 23 países, as respostas foram altamente favoráveis a uma finalidade social, além do lucro. Aparentemente, o Brasil não fez parte da pesquisa, mas na Argentina, as respostas foram divididas em partes praticamente iguais entre as três alternativas. Apesar de a importância atribuída ao lucro como única finalidade ainda ser bastante alta, o que se ressalta é que existe, em todo o mundo, um elevado interesse pelos aspectos éticos da empresa, como fonte de uma responsabilidade social que a ela se atribui. Mas uma outra pesquisa, desenvolvida e publicada em 1999 pela empresa de auditoria KPMG, vem fortalecer ainda mais essa tese, principalmente no que diz respeito à ética na atividade interna das empresas.
Ouvidos 2.300 funcionários das mais diversas empresas, 75% deles disseram ter observado violações da lei ou das normas da própria empresa nos doze meses anteriores. Em torno de 50% afirmaram que se o público tomasse conhecimento do que estava acontecendo em suas empresas, perderia a confiança nelas. 61% declararam que a sua empresa não pune os indivíduos que violam as regras éticas e 79% desses não convidariam conhecidos ou amigos a trabalharem na empresa. Para 60% desse mesmo grupo, não existia nenhuma expectativa de que os clientes indicassem sua empresa para outros clientes. Ora, numa economia como a dos Estados Unidos, onde a competitividade abrange de maneira significativa tanto o acesso ao mercado de mão de obra especializada quanto ao mercado de consumo, essa visão pode ser dramática. Essa curta e superficial incursão no campo das pesquisas sociais é suficiente para indicar que na visão do público, de forma geral, a ética nos negócios continua tendo grande importância. Os trinta anos que se passaram desde que as empresas começaram a se preocupar com a ética nas suas atividades não diminuíram essa importância e está provado que não se trata apenas de um modismo ou de mais uma onda. E como mostram as pesquisas, ainda resta muito a fazer para que o comportamento ético passe realmente a fazer parte da vida empresarial. Está claro que os especialistas e profissionais cujo objetivo é esta incorporação da visão ética aos negócios ainda têm muito o que aprender para estruturar uma organização perfeitamente ética mas claro também que ao longo desses trinta anos, muita coisa já foi assimilada.
Em suas conferências no Brasil, a Professora Nash apontava para três grandes estágios pelos quais a questão da ética nos negócios vem passando. São estágios que foram surgindo ao longo desses anos mas que continuam convivendo hoje. Trata-se dos estágios da ética do cumprimento (“compliance”), da ética da responsabilidade social (“social contract”) e da ética da informação e da tecnologia. O primeiro estágio começou, por vários motivos, durante os anos 70 nos Estados Unidos. À medida que as empresas americanas começaram a se tornar mais globalizadas em sua atuação nos mercados mundiais e à medida que, nas suas sedes, começaram a sofrer a influência de um mix cultural mas diversificado, por pressão de seu próprio governo tiveram de tomar algumas atitudes em defesa da ética. Em 1977, foi promulgada pelo Congresso dos EUA a lei contra a prática de atos corruptos no exterior. Um inquérito do Senado norteamericano havia revelado o extenso uso de suborno por empresas americanas – especialmente no Oriente Médio – para obter contratos junto a governos estrangeiros. Como, evidentemente, não havia nenhum registro destes subornos na contabilidade dessas empresas, o público americano, em muitos casos o maior detentor das ações dessas empresas, acabava sendo lesado. Mas as próprias empresas eram lesadas, na medida em que, não havendo registros, os perpetradores dos subornos tinham a tendência de ficar com uma parte substancial dos mesmos… A lei passou a estabelecer mecanismos e sanções e, em seus aperfeiçoamentos posteriores, criou penalidades extremamente pesadas para os dirigentes das empresas que praticassem atos de corrupção.
Por outro lado, o governo americano passou a tomar providências sérias em relação à prática de corrupção interna. Tentativas de suborno dentro dos Estados Unidos resultaram em exclusão de empresas importantes do rol de fornecedores do governo federal dos EUA. Essas empresas, para cumprir a lei, recuperar a confiança do governo e do público e restabelecer uma imagem de seriedade, numa demonstração de atitude pró-ativa criaram códigos de ética corporativa. Hoje, das 500 empresas que figuram na lista das maiores da revista Fortune, 99% têm seu código. Comitês de auditoria foram criados junto às diretorias de muitas empresas. Ainda numa visão de “ética de cumprimento”, em 1986, 48 empresas do setor de equipamentos militares, ou seja, 50% dos fornecedores do Departamento da Defesa dos EUA, assinaram um protocolo contendo 18 itens para promover a conduta ética e o respeito à lei pelos signatários. Ainda existem escândalos? Claro que sim. Todas essas companhias vão descobrindo até que ponto ainda estão envolvidas em atitudes impróprias. Em 1996, o Banco Daiwa, por exemplo, foi multado em 340 milhões de dólares. O esforço que as empresas realizam para superar essas situações gera respostas novas, como por exemplo o surgimento de uma classe de profissionais, os “gestores de ética” (“ethics officers”), cuja associação congrega hoje, nos EUA, 720 membros. Assim, o estágio da “ética do cumprimento” ainda continua em pleno vigor. Mas paralelamente, um outro estágio, o da “ética da responsabilidade social” foi surgindo. Apareceu primeiro na Europa, de uma forma um tanto negativa, com boicotes a empresas que discriminavam ou que praticavam atitudes anti-éticas nas suas relações trabalhistas. A ONU, por meio de suas resoluções referentes ao “apartheid”, nos anos 70, contribuiu para a conscientização do grande público neste sentido. Nos anos 80, incidentes como os da Nestlé na África, os estouros da Bolsa de Nova York em boa parte provocados por “insider trading”, a própria queda do Muro de Berlim e do Império Soviético provocaram muita reflexão sobre a questão da responsabilidade social das organizações em geral e das empresas em particular. O surgimento das questões ambientais veio aprofundar essas preocupações. Outros incidentes, como do Valdez-Exxon ou as controvérsias da Shell na Nigéria, foram provocando o nascimento de grandes organizações ambientalistas, como Greenpeace e outras, generalizando o debate. Em 1997, 165 nações assinam o Tratado de Kyoto e em 2000, a ONU lança o “global compact” buscando unir os empresários, os sindicatos trabalhistas e a sociedade civil na promoção de uma responsabilidade social na economia global.
Em resposta a essas novas preocupações, bem diferentes da busca de um puro e simples cumprimento da lei, as empresas passaram a adotar novas atitudes de natureza pró-ativa. Em primeiro lugar, expandiram as suas preocupações éticas para além dos limites da própria empresa. Seus códigos e credos passaram a abranger os diversos públicos (“stakeholders”) que se relacionam com a empresa – além do público interno, também os clientes, os fornecedores, os acionistas, a comunidade, o governo. Assim, os “balanços sociais”, que nos anos 70 surgiram para avaliar as ações das empresas em relação a seus funcionários, passam a englobar indicadores que medem as realizações empresariais para com esses diversos públicos. Cada vez mais, na perspectiva de que as empresas do futuro são as que saberão fazer frente às suas responsabilidades sociais, os investimentos novos – orientados por analistas de uma nova geração – se dirigem àquelas que demonstram ter esta característica. A quantas andamos hoje? Os estágios 1 e 2 estão em pleno desenvolvimento mas algo novo está surgindo no campo da ética nos negócios. Os debates públicos estão aí e indicam certas novas tendências. Esses debates hoje têm o seu foco na informação e nas novas tecnologias. Começaram por volta de 1995. A informática e as novas tecnologias estão entre nós há muito mais tempo, mas foi por volta desta época – há apenas seis anos, pasmem! – que a popularização dos sistemas de informação eletrônicos, como a Internet, o e-mail, o e-commerce, começou a influenciar diretamente os costumes e, por conseqüência, a ética empresarial. Um cenário totalmente novo, circunstâncias totalmente diferentes surgem da noite para o dia. O que está acontecendo, o que está diferente?
Em primeiro lugar, o fenômeno é global, não está mais localizado apenas nos países industrializados, onde os dois primeiros estágios haviam começado. Depois, as questões que surgem são totalmente novas, quando comparadas com as que formavam o grosso dos assuntos dos estágios da ética do cumprimento e da ética da responsabilidade social. Por exemplo, na questão do cumprimento das leis e das normas, hoje, os debates concentram-se na preparação das organizações contra fraudes. O roubo de cartões de crédito, a implantação de programas de computador pirateados, a criação de contas falsas na contabilidade das organizações com o objetivo de apropriações indébitas, estão hoje na ordem do dia. O dinheiro se transfere com a velocidade da luz e o problema consiste hoje em como saber onde ele está: veja-se o que aconteceu com o Banco Barings. A questão mais importante, porém, no campo do cumprimento, está hoje em saber onde está a lei. Quem estabelece as sanções? Qual é a legislação que prevalece? No campo do e-commerce, por exemplo, a Yahoo tem páginas de temas pornográficos. Na França, isto é legal, mas nos Estados Unidos, não. Quem decide nessas questões? Os novos aspectos da responsabilidade social também estão em discussão. Como superar, por exemplo, o chamado “fosso digital”? Quem pode ter acesso às novas tecnologias? Mais do que isso: quem tem acesso aos meios necessários para utilizar as novas tecnologias? Uma coisa é ser um usuário de computador equipado com um telefone celular. Outra coisa é ter a capacidade de utilizar esses instrumentos para fazer negócios pela Internet. Como vamos tornar essas coisas possíveis, numa visão ética dos negócios?
Por outro lado ainda, grandes discussões estão sendo incubadas no campo da liberdade de expressão e da privacidade. A mídia trouxe um caso interessante recentemente. Como todos sabem, é perfeitamente possível, com técnicas digitais, substituir a cabeça de alguém numa imagem pela de outra pessoa. Alguém elaborou um filme onde a cabeça de Bill Gates foi colocada no corpo de uma pessoa que atira em outra com um revólver. É claro que é uma ficção total, mas é Bill Gates atirando em alguém! A questão é a seguinte: Bill Gates tem direitos sobre sua imagem e não querer ser mostrado atirando em alguém? É uma questão ética de conflito entre a liberdade de expressão e a privacidade, que não tem legislação nem regulamentação. Há uma série de certificados e de prêmios, hoje em dia, para questões de responsabilidade social. Seria interessante verificar se as empresas que procuram essa comprovação de seu envolvimento ético, estão, por exemplo, comprometidas em não vender para terceiros a lista de seus clientes ou em não comprar a dos outros…
Por fim, na era da informação, do conhecimento e da tecnologia, há uma outra questão ainda por resolver. É o problema da velocidade, da facilidade e da abrangência geográfica do fluxo da informação. Ela poderá ser a garantia da qualidade ética dos negócios ou, ao contrário, poderá ser fonte de grandes confusões e grandes malandragens. A título de exemplo, vejamos o que aconteceu recentemente na Índia. Um repórter de muita iniciativa disfarçou-se em homem de negócios e pôs um gravador no bolso. Ele pousou como alguém que procurava obter contratos com o governo. Ele fazia contatos com pessoas muito próximas do primeiro ministro, quando uma dessas lhe pediu uma “contribuição financeira”… Aí que entra a importância da informação e da tecnologia. O repórter, mais do que depressa, lançou a notícia no circuito internacional da mídia e na Internet. Isso não passaria de mais um escândalo entre muitos, se a Índia não estivesse procurando hoje, de toda maneira, criar uma imagem de confiabilidade num mundo globalizado. A comunidade empresarial se rebelou em peso contra o acontecido e a revolta do público foi impressionante. Tudo isso aconteceu por causa das novas tecnologias e da informática. Assim, ao mesmo tempo em que as novas tecnologias podem levar, em questão de instantes, a notícia sobre fatos reprováveis aos quatro cantos do mundo, elas também podem ser os grandes inibidores desses mesmos fatos. Um exemplo um pouco mais antigo mas bem claro a esse respeito é o que aconteceu em Atlanta, no Sul dos EUA, nos anos 60. A municipalidade queria expandir o seu aeroporto para um nível internacional que realmente contribuísse para o crescimento de Atlanta. Mas o prefeito sabia perfeitamente que a comunidade local era profundamente racista. E ao contrário de muito outros prefeitos, ele percebeu que a abertura desse aeroporto levaria o resto do mundo a julgar o que estava acontecendo em Atlanta e como se estava cuidando da questão racial. A não ser que ele fosse capaz de superar aquele tipo de segregação profunda, o resto do mundo e mais especificamente o resto dos EUA não fariam negócios com Atlanta, por causa da ignorância e do atraso geral a que atribuiriam esse racismo. Ele percebia isso sem a Internet, sem os meios disponíveis hoje. É esta consciência, de natureza cosmopolita, que as novas tecnologias podem provocar. O conhecimento e a consciência globais, ao mesmo tempo causas e conseqüências da globalização, nos mostram hoje a quantidade de questões que não mais podem ser resolvidas pelos caminhos tradicionais e que requerem o surgimento de novos critérios e novos referenciais. No campo da ética nos negócios, o desafio está lançado. Estruturas e organismos ao nível das nações já não bastam para dirimir essas questões: organismos multilaterais são absolutamente necessários, instâncias de mediação e arbitragem a nível internacional serão indispensáveis para os negócios amanhã. E acima de tudo, os empresários deverão utilizar todas as suas capacidades de reflexão para, dentro de uma visão ética de seus negócios, continuar a contribuir para a qualidade de vida dos cidadãos de um mundo globalizado.
Peter Nadas, Presidente do Conselho de Curadores da FIDES (Fundação Instituto de Desenvolvimento Social e Empresarial). Site: www.fides.org.br
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