Substituir culpa por responsabilidade, perseguição por encontro, imposição por diálogo, castigo por reparação do dano, coerção por coesão social. Esses são os pressupostos da Justiça Restaurativa, uma prática jurídica ainda pouco conhecida no Brasil, mas com resultados promissores.
Segundo o coordenador do Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul, Leoberto Brancher, 95% das vítimas que adotaram os círculos de conciliação entre os 380 casos pesquisados pelo Juizado Infância e Juventude de Porto Alegre, aprovaram a prática. Em São Paulo e Brasília, o modelo também já tem desempenho satisfatório.
Entretanto, a prática ainda gera polêmica. Em entrevista exclusiva, Brancher explica as bases desse sistema, descorre sobre os desafios e trata sobre os limites do novo modelo. Confira.
1) Responsabilidade Social – Escolas públicas de São Paulo adotam desde 2007 o programa Justiça Restaurativa, que cria grupos de reflexão para discutir atos violentos. A iniciativa chegou a mais de 900 instituições do estado neste ano e segundo dados da Secretaria de Educação, em todos os locais em que o sistema foi implementado, o resultado foi positivo. O que se pode entender por Justiça Restaurativa e qual a sua principal proposta de trabalho?
Leoberto Brancher – A Justiça Restaurativa (JR) é uma nova forma de abordagem para conflitos e delitos, baseada no empoderamento e mobilização das partes envolvidas, com vistas à sua autocomposição. Mais do que encontros entre ofensores, ofendidos e suas comunidades de apoiadores, no entanto, a aplicação prática dos princípios da JR condiciona uma profunda revisão crítica dos valores, posturas e métodos que tradicional se instalam, de forma mais ou menos inconsciente e automática, nessas situações.
Há uma matriz cultural condicionando nossas respostas, e essa matriz é fundada numa ética de reprodução da violência: culpa, perseguição, castigo, enfim, violência que gera mentira e violência. Por isso, ao resolver um conflito ocorrido no pátio de uma escola, as práticas restaurativas colocam em questões estruturas historicamente arraigadas e cristalizadas, de forma emblemática, no modelo da justiça oficial – notadamente, na atuação da justiça penal.
Substituir culpa por responsabilidade, perseguição por encontro, imposição por diálogo, castigo por reparação do dano, coerção por coesão social são os pressupostos dessa nova matriz, que podem permitir uma atuação não violenta tanto para a justiça oficial, quanto para as intervenções de microjustiça que são dadas no dia-a-dia, em todos os âmbitos de relacionamento social.
2) RS – A Justiça Restaurativa é recomendada pela Organização das Nações Unidas (ONU), mas esse sistema é aplicável em todos os casos?
LB – Em tese, não há restrições relacionadas à natureza ou à gravidade do conflito ou do crime que, por si só, contra-indique o procedimento. Em tese, bastaria haver o interesse das partes. Não importa se o caso envolve um homicídio, um latrocínio, uma briga de vizinhos, uma pichação.
Sempre é importante realçar que o encontro só deve ocorrer se as pessoas envolvidas concordam. Ninguém pode ser forçado, legalmente, não ao menos no sistema brasileiro, a encontrar-se e conversar com seu desafeto. Também não haverá cabimento se o ofensor não assumir a prática do fato. Não se vai chamar uma vítima para ouvir as justificativas, explicações ou evasivas do seu ofensor. Nem vai se discutir se os fatos ocorreram dessa ou daquela maneira. O que aconteceu já deve estar relativamente claro. Presentes esses requisitos, qualquer caso, em tese, seria compatível com a JR.
Na prática, porém, pode haver restrições diversas. Primeiro as de ordem jurídica, como por exemplo, a indisponibilidade da ação penal na maior parte dos crimes graves, notadamente os que envolvem violência contra a pessoa, praticados por infratores maiores de idade. Segundo esse princípio, nesses casos, não há como fazer acordos. Ou, caso ocorram, eles não podem alcançar efeitos práticos no que se refere ao resultado do processo. Já quanto a menores, essa restrição como regra geral não existe. Sempre é possível flexibilizar o processo e encaminhá-lo a uma solução distinta. Aliás, possivelmente por essa maior liberdade jurídica, é que a JR vem prosperando significativamente na área da Justiça Juvenil, ou seja, dos crimes praticados por menores.
Mas também há restrições de ordem técnica, recomendações advindas de aprofundados estudos e acompanhamentos de casos como a que não indicam JR para casos de violência intra-familiar ou abusos sexuais, que em regra pressupõem uma relação de intimidade e de uma relação continuada entre as partes, dentro da qual a vítima pode acabar sendo revitimizada segundo os desdobramentos de um encontro mal sucedido.
Mas o que importa dizer é que a JR não veio para substituir a Justiça tradicional, veio para complementá-la e qualificá-la. Um único caso que se realize num juizado ou numa escola, seguindo essas inovações, trará ensinamentos importantíssimos e terá influência sobre todo o contexto de relacionamento e, mesmo, sobre a forma das pessoas atuarem ao resolverem outros casos, ainda que usando vias tradicionais. Ao compreender-se na prática que é possível fazer uma escuta do caso e das pessoas de forma não culpabilizante – mas também não desresponsabilizante, mais respeitosa, mais atenciosa, mais empática, o dividendo é a humanização de todo o sistema.
3) RS – Quais são os principais limites e os desafios desse sistema?
LB – Os primeiros são culturais. Renunciar aos hábitos é um empecilho a todo e qualquer processo de mudança. Mas no caso, a mudança diz respeito a valores implícitos na cultura, que sustentam estruturas internas e externas muito consolidadas. Há um funcionamento maquínico, encoberto por um acordo social tácito de que é assim que as coisas funcionam e devem funcionar, na reação vingativa de alguém diante de um crime.
A pergunta clássica: “Tudo bem, é fácil falar, você é juiz. Mas o que você faria se a vítima fosse seu filho?” Como Juiz, eu responderia: – não posso decidir isso pelas pessoas. Embora o Sistema de Justiça se arrogue a permanente condição de falar pelas pessoas, nunca podemos saber qual é o interesse, a necessidade de cada um. Precisamos respeitar sua vontade, sua palavra, e perguntar a elas.
Como pessoa, eu responderia? – Não posso responder em tese. Claro que não gosto nem de imaginar numa situação dessas, mas somente se algo ocorresse, concretamente, eu poderia me colocar no lugar. Mas não é assim que funciona: todos tendemos a responder de antemão. E esse proceder apriorístico, no qual já tem ideias prontas e posição fechada sobre tudo e sobre todos, é um impedimento monumental a viver uma experiência inovadora e que traz resultados. Mais de 95% das vítimas que participaram em 380 casos de JR pesquisados no Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre disseram ficar satisfeitas com a solução.
Uma segunda classe de limites são operacionais. O procedimento é muito sofisticado. Exige uma atuação personalizada, artesanal, incompatível com o processamento massivo dos conflitos que é a realidade do Judiciário de hoje. Acho que o mesmo ocorre em escolas. A regra são os procedimentos padronizados e a despersonalização. Dentro disso, a Justiça Restaurativa é um grito de resistência. Porém, mesmo que em um grande volume de casos houvesse em tese cabimento e adequação, inclusive jurídica, seria muito difícil, dentro das condições atuais de funcionamento dos sistemas institucionais, atender a todos mediante círculos restaurativos. A roda viva da vida, a mesma que roda automaticamente, produzindo e reproduzindo a violência, não abre espaço para a escuta e para o encontro.
4) RS – O contato com o agressor pode gerar traumas para as vítimas? Por quê?
LB – Com certeza um dos maiores riscos de um encontro restaurativo é a revitimização. Por isso o encaminhamento ou não do caso deve ser sempre pensado no interesse e segundo as necessidades da vítima. E o procedimento precisa ser cuidadosamente conduzido. Desde a avaliação prévia quanto ao seu cabimento, quanto os passos do encontro, tudo deve ser avaliado e conduzido com muito respeito, responsabilidade e habilidade, a fim de proporcionar um ambiente seguro e protegido para o encontro. Dizemos que, em JR, não se pode abrir uma porta que depois não se possa mais fechar. Se não houver essa garantia, se não for para promover a cura, é melhor deixar as feridas cicatrizarem por si sós.
5) RS – Como essa corrente chegou ao Brasil? Já existem muitas iniciativas nesse sentido?
LB – A introdução da JR ocorreu por meio do professor Pedro Scuro Neto, que foi o primeiro estudioso e divulgador da JR no país, com quem tive o primeiro contato inicial em 1999. Em 1999 e 2000, então como presidente da ABMP, Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Juventude, incluímos textos sobre JR em duas importantes publicações da associação, distribuídas nacionalmente. Em 2002, fizemos nosso primeiro caso prático em Porto Alegre.
Mais tarde, em 2005, a Secretaria da Reforma do Judiciário (SRJ), com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), ligado a ONU, procurou alguns juízes para apoiar projetos experimentais. Surgiram então os primeiros laboratórios restaurativos no Brasil, em Porto Alegre, São Caetano do Sul, e em Brasília. Em 2005 e 2006 a SRJ publicou duas obras com importantes subsídios. Depois, ao longo desses dez anos, foram surgindo traduções, como a do professor Haward Zher, publicado pela Editora Palas Athena, e monografias como a do professor Leonardo Cicca, e o tema foi se difundindo.
6) RS – Além das escolas de São Paulo, é possível citar outra iniciativa de sucesso?
LB – Creio que os projetos pilotos de Brasília e de Porto Alegre também merecem ser conhecidos.
7) RS – Quais são os principais entraves para a implementação e aplicação desse sistema no país?
LB – A vocação da JR não é revolucionária, não é de trocar um sistema por outro, mas é subversiva, de verter pouco a pouco uma nova ética de relação com o outro e, pois, de enfrentamento dos conflitos. E isso se fará de forma transversal e silenciosa, inoculando-se as concepções e valores restaurativos nas mais anônimas rotinas. Pouco a pouco, aqui ou ali, em algum momento, uma pessoa levantará a mão não mais para enfiar o dedo na cara da outra, mas para pedir um círculo.
Nenhuma câmera, provavelmente nenhum banco de dados, nenhum formulário de pesquisa, registrará esse gesto. Mas a mudança estará silenciosamente em curso. E será feita sob os olhares de gratidão que encerram cada caso, e não sob o clamor de multidões em plenário.
8) RS – De que forma as organizações da sociedade civil podem contribuir para o melhor entendimento desse sistema e sua implementação?
LB – Lembro um ensinamento ancestral que dizia: ver, ouvir, ousar, calar. É preciso despertar para a novidade. Aprender sobre ela e, tão logo possível, fazer, fazer e fazer. Quando estivermos fazendo, não será preciso propaganda. Basta contar os casos. Ou, melhor, convidar as pessoas a contarem suas próprias histórias, como vocês me convidaram para falar aqui.
9) RS – Como o senhor define o conceito de “responsabilidade social”?
LB – A questão da responsabilidade é central em Justiça Restaurativa. Teoricamente, sustenta-se que a JR corresponde a uma mudança de perspectiva que por sua vez correspondente a um novo modelo de Estado. A Justiça Punitiva tradicional corresponderia ao modelo do ”Estado Guardião”. A Justiça Reabilitadora, ao modelo de Wellfare State. E a Justiça Restaurativa, a um Estado de Responsabilidade Social. Mas antes disso, temos que pensar em responsabilidade como responsabilidade, e ponto. A palavra “social” dá apenas o endereço para onde ela está sendo direcionada. Temos de perguntar então que tipo de responsabilidade estamos direcionando?
A Justiça tradicional promove um modelo de responsabilidade passiva. Nessa perspectiva, responsabilizar significa sujeitar ao castigo. A JR, ao substituir culpa por responsabilidade, propõe que o sujeito, que já se mostrou capaz de produzir o dano, mostre também que é capaz de assumir as consequencias do seu ato, e de repará-lo. Isso implica uma atitude de responsabilidade ativa, capaz de acionar um novo modelo de cidadania democrática.
Associação dos Magistrados Brasileiros – Tel.: (61) 2103-9020
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