Estamos vivendo um momento importante na história brasileira. O governo está aberto para a possibilidade de a sociedade participar do processo de criação de uma nova lei de Responsabilidade Social. Estar presente nesse evento é de fundamental importância. Na entrevista especial desta edição, trazemos comentários do técnico do IPEA, André Campos que fala sobre os pontos mais importantes que precisam ser trabalhados nesse sentido. Esperamos, com essa entrevista, dar uma resposta completa e interessante para os diversos alunos e profissionais que nos escrevem pedindo informações sobre a Lei de Responsabilidade Social no país. Confira:
1) Responsabilidade Social – O senhor pode esclarecer se já existe atualmente uma Lei de Responsabilidade Social no Brasil? Ela é eficiente?
André Campos – Está tramitando no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 29/2003, que tem por objetivo alterar o artigo 193 do Título VIII, Capítulo I, da Constituição Federal, que passaria então a contar com a seguinte redação: “A Ordem Social tem como base o primado do trabalho e, como objetivo, o bem-estar e a justiça sociais, a serem avaliados por meio de indicadores de responsabilidade social, nos termos da lei complementar” (o grifo corresponde à redação acrescida).
Com esse acréscimo ao artigo 193, pretende-se de certa forma estabelecer parâmetros oficiais para a verificação dos avanços alcançados (ou a serem ainda alcançados) pelo Estado brasileiro no âmbito da Ordem Social. Tais parâmetros devem ser detalhados em uma lei complementar, a ser denominada Lei de Responsabilidade Social. Pretende-se que essa lei estabeleça Metas Macro-Sociais para o país como um todo e para cada uma de suas regiões e unidades federativas. E, finalmente, de modo a se poder verificar o cumprimento dessas metas, deve ser instituído um Índice Nacional de Responsabilidade Social.
Segundo a justificativa que acompanha a PEC, pretende-se que os princípios a reger a Lei de Responsabilidade Social sejam os seguintes: a) a transparência da ação e do gasto do Estado na persecução das Metas Macro-Sociais, b) a responsabilidade na ação e no gasto do Estado, c) a inovação na ação e no gasto do Estado, d) a eficácia da ação e do gasto do Estado. Acrescente-se que a Lei de Responsabilidade Social deve aplicar-se não só à União, mas também a estados e municípios.
2) RS – O que precisa ser feito para termos uma legislação adequada nessa área?
AC – A PEC é meritória na medida em que concebe o enfrentamento da questão social como uma prioridade do Estado brasileiro, equiparada a prioridades como a do equilíbrio fiscal-financeiro (foco de atenção da Lei Complementar Nº 101/2000 – denominada Lei de Responsabilidade Fiscal). Esse enfrentamento da questão social, a ser acompanhado em seu avanço por meio da instituição das metas e do índice já citados no âmbito da Lei de Responsabilidade Social, conta com diversos pontos positivos, que merecem ser aqui destacados.
Em primeiro lugar, a PEC pressupõe e ao mesmo tempo aponta para diversos princípios já albergados na própria Constituição Federal, como o da transparência da ação e do gasto estatal (mencionado no Título II, Capítulo VII, artigo 37). Em segundo lugar, a PEC leva em conta não só a ação e o gasto realizados em nível federal, mas também os efetuados em nível estadual e municipal. Isso é relevante porque, hoje, apenas cerca de metade dos dispêndios sociais no país estão sob a responsabilidade da União, sendo que a outra metade se distribui por estados e municípios (a esse respeito, verificar Castro, Jorge et alii – Análise da Evolução e Dinâmica do Gasto Social Federal: 1995-2001 – TD 988, Brasília, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2003). E, em terceiro lugar, a PEC leva em conta a institucionalidade já existente no Estado para o monitoramento do enfrentamento da questão social, ao menos em nível federal.
Um exemplo disso está na vinculação operacional das Metas Macro-Sociais a instrumentos como o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei de Orçamento Anual. Assim, são vários os pontos positivos a serem realçados na PEC aqui analisada. Não obstante, essa PEC apresenta alguns elementos que, a depender de seus desdobramentos futuros na Lei de Responsabilidade Social, podem se transmutar em problemas que devem ser aqui já adiantados.
Em primeiro lugar, no acompanhamento das Metas Macro-Sociais por meio do Índice Nacional de Responsabilidade Social, é preciso atentar para as dimensões da questão social a serem refletidas por este índice. É plausível supor que essas dimensões, dado seu grande número e sua ampla variedade, sejam bem representadas por apenas um índice como o Índice Nacional de Responsabilidade Social, que pretende sintetizar diversos indicadores parciais? Essa questão da verificação do cumprimento das Metas Macro-Sociais talvez seja melhor equacionada não com um só índice, mas sim com um conjunto deles. Seja como for, mesmo supondo-se que apenas um índice como o Índice Nacional de Responsabilidade Social seja capaz de dar conta do número e da variedade de dimensões da questão social brasileira, os indicadores parciais que ele sintetiza são regularmente produzidos e permitem a desagregação do território do país? Essa questão da temporalidade e da territorialidade de tais indicadores deve ser levada em conta na definição do cronograma e da abrangência não só do Índice Nacional de Responsabilidade Social, mas também das Metas Macro-Sociais. Até porque, como é bem conhecido, alguns tipos de indicadores, como os municipais, são pouco numerosos e pouco contínuos no tempo.
Em segundo lugar, ainda no que se refere à temporalidade, na definição do cronograma a ser seguido pelo Índice Nacional de Responsabilidade Social e pelas Metas Macro-Sociais, é necessário lembrar que os resultados da ação e do gasto do Estado no âmbito da Ordem Social raramente são diretos e imediatos. A exclusão social é um fenômeno com múltiplas (e nem sempre associadas) causalidades. Consequentemente, é difícil realizar uma associação direta e imediata entre a ação e o gasto do Estado, por um lado, e os resultados alcançados especificamente na Ordem Social, por outro.
Em terceiro lugar, na definição das Metas Macro-Sociais e no seu acompanhamento por meio do Índice Nacional de Responsabilidade Social, é preciso lembrar que, mesmo quando considerado como União, estados e municípios, o Estado não esgota em si mesmo o enfrentamento da questão social brasileira. A sociedade civil, organizada de maneiras variadas (associações de classe, igrejas, organismos comunitários etc.), também toma parte nesse enfrentamento.
Em quarto e último lugar, é necessário atentar para a eventual e perigosa “sobre-responsabilização” da ação e do gasto na Ordem Social, dada a dinâmica diferenciada (e não raro contraditória) da Ordem Econômica e Financeira no país (tal como prevista no Título VII da Constituição Federal). Ou seja, na definição das Metas Macro-Sociais, bem como no seu monitoramento pelo Índice Nacional de Responsabilidade Social, não se pode desconhecer que a questão social é decisivamente afetada pela questão econômica e financeira brasileira. Inclusive, a esse respeito, é de se perguntar o que a Lei de Responsabilidade Social estabelecerá para a situação de discrepância (ou mesmo de conflito) entre as metas estabelecidas na Ordem Social (as Metas Macro-Sociais) e as metas definidas na Ordem Econômica e Financeira (por exemplo, as metas da Lei de Responsabilidade Fiscal)? Ou, em outros termos, de acordo com a Lei de Responsabilidade Social, quem, em que momento, com que recursos e de que maneira deverá dirimir tal divergência (ou tal tensão)?
3) RS – É possível construir uma nova Lei de Responsabilidade Social de forma democrática? Como é possível construir esse processo de forma participativa com a sociedade civil?
AC – Acredito que não só é possível como necessário. Conforme já disse, a União, os estados e os municípios não esgotam em si o enfrentamento da questão social no país. A sociedade civil tem sua parte nesse enfrentamento, e essa parte é fundamental.
4) RS – O senhor acredita que pode ser viável uma lei que favoreça as empresas que atuam na área de responsabilidade social? Com incentivos fiscais, por exemplo.
AC – Eu não teria elementos para responder a essa questão. Até porque, para além da responsabilidade social do Estado, uma parte importante da discussão no Brasil atual consiste em definir o que é a responsabilidade social do setor privado mercantil, ou seja, das empresas. A responsabilidade destas últimas passa por onde? Apenas por eventuais e pontuais ações de benemerência para conseguir espaço na grande imprensa ou, pelo contrário, por ações que incluem condições de trabalho, de remuneração e de representação dignas para os seus trabalhadores, entre outras? Essa discussão tem de avançar para que se possa responder a tal questão.
5) RS – A atual ordem econômica e financeira parece ser bastante desfavorável – em vários momentos – à ordem social. Na sua opinião, quais são os principais problemas nessa coexistência das duas ordens?
AC – Nos anos 90, a dinâmica da ordem econômica brasileira caracterizou-se por variadas exclusões, que atingiram diversos grupos da sociedade. Exclusões que, em alguma medida, puderam ser traduzidas na vulnerabilização das condições de vida de tais grupos, no âmbito da educação, da saúde, da habitação, do mercado de trabalho e assim por diante. Ocorre que, no debate atual, que se desdobra inclusive na grande imprensa, a responsabilidade por essa vulnerabilização não aparece como sendo da ordem econômica, mas sim da ordem social. O que se vê então é uma espécie de “sobre-responsabilização” nociva desta última ordem, que não raro tem de responder a perguntas do tipo: “Como é que as políticas sociais brasileiras, gastando aproximadamente 23% do PIB, não resolvem a questão social do país?”.
6) RS – Num momento futuro, é possível existir alguma forma de uma beneficiar e nutrir a outra respectivamente?
AC – Espero que sim.
7) RS – É notório que o governo atual não tem atuado da forma como prometeu no campo social. De acordo com dados do Banco Mundial, apenas 20% do dinheiro Porque isso está acontecendo?
AC – É preciso cuidado com dados desse tipo, que pretendem mostrar a proporção de recursos que, por meio da política social, o Estado destina a cada ponto da estrutura de classes brasileira (com destaque para os indigentes e os pobres). Até porque, freqüentemente, esses dados tendem a “resumir” a questão social do país à questão algo restrita da indigência e da pobreza (ainda que ela seja crucial), “esquecendo” que ela na verdade diz respeito à questão mais ampla dos direitos e da cidadania. Aliás, dados dessa natureza têm sido muitas vezes utilizados na discussão atual para “desmontar” direitos duramente conquistados pela sociedade brasileira em áreas como a de educação, assistência e previdência social.
8) RS – Há algum plano para aumentar essa porcentagem nesses últimos anos de governo?
AC – Acredito que, para além da discussão dessa ou daquela porcentagem, o fundamental é o debate acerca do investimento em políticas sociais universais em relação aos seus públicos, robustas no que se refere aos seus recursos materiais e humanos, perenes no que concerne à sua duração para além dos governos, articuladas em sua relação com outras políticas, integradas em cada ponto do território e acompanhadas de perto em sua formulação, implementação e avaliação pela sociedade civil. Exemplos de políticas com essas características podem ser encontrados na Constituição Federal de 1988, que teve o cuidado em tratar a questão social não apenas no registro estrito da indigência e da pobreza (ainda que ele seja fundamental), mas também no registro amplo dos direitos e da cidadania.
9) RS – Como o senhor avalia a queda de braço entre a equipe econômica do Governo Lula e os setores mais progressistas que defendem maiores gastos sociais? É possível prever quem vencerá?
AC – Eu não teria elementos para responder a essa questão.
10) RS – No Brasil é comum dizer que há “leis que pegam, outras não”. O senhor crê realmente que uma Lei de Responsabilidade Social seria devidamente respeitada no país?
AC – Desde que essa lei seja construída com a sociedade civil, levando em conta suas múltiplas perspectivas sobre o que deve ser a responsabilidade social do Estado brasileiro, não há motivos para crer que ela não seja respeitada no país.
Técnico de Planejamento e Pesquisa; Diretoria de Estudos Sociais e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – E-mail: andre.campos@ipea.gov.br
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